Sei que não deveria fazer isso com meus amáveis cinco ou seis leitores.
Que me desculpem. Mas, terei que fazer.
Quando comecei a série Longe de Casa que hoje se encerra – espero! –, pensei em terminá-la com uma história que presenciei em Ávila, na Espanha, no primeiro dia de janeiro deste ano.
Pois é.
Pensei.
Mas, os dias foram se passando e a história – que parecia estar tão próxima de mim – hoje me parece distante, algo perdida. É uma tênue lembrança.
Nem sei se quero contá-la.
Para ser sincero, não sei se saberia contá-la.
Como poderia descrever aqui um brevíssimo instante da existência de alguém que não conheço, que sequer troquei uma palavra, só vi à distância por minutos?
A mulher da Ávila.
Melhor seria chamá-la de a Moça de Ávila, assim mesmo em maiúsculas.
Deve ter em torno de 35 anos, se tanto. É jovem e bonita. Tem gestos elegantes mesmo em uma lanchonete Made in Usa que chega a destoar do padrão clássico de uma das praças daquela bela cidade medieval espanhola.
Ai, ai, ai...
Agora comecei a narrativa. Como parar?
Pois então sigamos em frente.
Ela acompanha, atenta, o ir e vir do menino robusto, de cabelos encaracolados. Tem uns 5 anos e se esbalda em subir e descer uma engenhoca que tem forma de cubos sobrepostos. A saída é um escorregador que desemboca numa dessas piscinas de bolas azuis, verdes e vermelhas.
Engraçado, não lembro ter visto bolas amarelas ou brancas.
Estão vendo. Mal distingo as cores das bolas e, mesmo assim, insisto em lhes falar de sentimentos e impressões.
Enfim, sigamos.
O que me chamou a atenção, vou lhes dizer, foi o fato dela estar desacompanhada. Em pleno primeiro de janeiro. Ah! Também não trazia aliança em nenhuma das mãos – o que me passou a impressão de que a Moça de Ávila estava triste.
Mesmo quando chamava a atenção do menino, o tom era carinhoso – e triste.
-- Pedro, Pedro, cuida-te, ninho.
Calava-se a seguir.
Seus olhos viajavam pelas paredes iguais e sem vida da lanchonete, repleta de gente jovem e barulhenta. Abstraía-se num silêncio pontuado pela fumaça do cigarro que tinha entre os dedos e, de quando em quando, levava à boca.
A sensação que eu tinha é que ela, a Moça de Ávila, naquele preciso instante, não estava ali. O pensamento perscrutava o passado. Àquela hora da noite – entre 8 e 9 horas – num primeiro de janeiro, em que ou em quem pensava.
No marido distante – porque hoje o uso ou o não uso de aliança nada provam. Talvez o felizardo estivesse trabalhando ou viajado a serviço? Pode ser.
Ou será que vivera uma paixão alucinante – ela não levava jeito de quem se arriscaria em aventuras – e, por esses desencontros da vida, hoje se via só?
O menino tranqüilo que subia e descia do escorrega, que segundos depois sumia dentro do cubo gigante, que retribuía o sorriso carinhoso da mãe era fruto de um grande amor, certamente.
-- Pedro, Pedro, cuida-te.
Não sei quanto tempo fiquei ali a observar. A fazer conjecturas sobre a solidão e a roda-gigante de nossas existências e amores. Sim, porque um dia a Moça de Ávila viveu o encanto de um grande amor, foi muito feliz, como eu, como você...
Por um tempo que seja, essa felicidade valeu à pena.
E ainda hoje vale e valerá. Bastava ver aquele menino a brincar.
Aliás, foi dele a iniciativa de ir embora. Assim me pareceu.
Correu para a mesa onde estava a mãe. Ajoelhou-se na cadeira, mordeu o último pedaço de hambúrguer, bebeu o que restava da Coca-Cola no copo de papelão e esfregou as mãos fechadas nos dois olhinhos. Sinal de sono, em qualquer lugar do mundo.
A Moça de Ávila levantou-se. Pegou os casacos no cabideiro. Agasalhou o garoto, sem esquecer-se de não deixar o gorro sobre os olhos. Depois, fez o mesmo consigo. Jogou as duas pontas do cachecol para trás e veio em direção à porta de mãos dadas com Pedro.
Acho que descobri o porquê não queria tocar no assunto.
Explico.
À saída, por um instante, nossos olhares se cruzaram.
Um brevíssimo e abençoado instante, como disse.
Mas, fiquei com a sincera impressão de que, naquele preciso momento, nos pertencemos... |