Para João Paulo, Carol, Mariana e Magrão…
Permitam-me um texto/homenagem.
Eu explico: a imprensa comunitária deve muito a dois quixotes. Seus nomes: José Jofre Soares e Antônio de Oliveira Marques, dois jornalistas com os quais tive o privilégio de conviver em meados dos anos 70. Digamos que estão entre os notáveis precursores da implantação dos jornais de bairro na Capital e também no ABC. Eram principalmente dois sonhadores em busca da utopia de uma sociedade mais justa e solidária.
Autodidatas, trabalharam em jornais diários paulistanos na década de 40/50. No início dos anos 60, porém, fundaram então alguns jornais de bairro na periferia de São Paulo e um em São Bernardo – a Gazeta de São Bernardo. A proposta era organizar a sociedade e dar “voz e vez”, como gostava de dizer o Zé Jofre, aos moradores dos núcleos urbanos que começavam a pipocar nos arredores da Grande São Paulo.
Era o início do que, posteriormente, veio a se chamar de periferia. Uma proposta que se reforçou ainda mais após o Golpe Militar de 64 que arrasou a sociedade, dizimou partidos políticos, sindicatos, associações de estudantes e todo e qualquer núcleo onde pudesse dar vazão aos reclamos sociais.
Marcão queria que as pessoas voltassem a se juntar e a entender que tinham um ideal comum. Que a luta era primeiramente por melhor qualidade de vida. Achava que o processo de urbanização favorecia a união de todos em torno de uma causa, visto que o perfil do habitante dessas regiões era muito próximo.
Aqui, cabe abrir parênteses: a convivência de ambos não era simples. O cearense Zé Jofre, originariamente gráfico, era adepto de caudalosos artigos doutrinadores, repletos de citações. Artigos sistematicamente vetados por Marquês sob a implacável alegação: “Uma lauda todo mundo lê. Duas, só os mais interessados. Três, nem a mãe da gente agüenta, Zé”.
Jofre era useiro e vezeiro em citações. Defendia-se: “O povo só será livre quando se autoconhecer. Mas, para tanto, vai precisar fazer uma auto-avaliação e reconhecer as verdadeiras condições em que vive”. Marcão concordava em tese, mas discordava na prática. Defendia uma organização social sem que houvesse qualquer tipo de tutela ou manipulação da imprensa, fosse ela qual fosse. “Por isso, os jornais regionais são fundamentais. Entendem melhor a reivindicação, estão mais próximo das pessoas. São legítimos instrumentos da luta que nasce nas entidades e associações”.
Marques exercia uma ascendência natural. Queria textos curtos, objetivos, na forma direta, sem qualquer adjetivação. O fundamental é que trouxessem a denuncia de uma questão real: um braço de rua, a falta de calçamento, iluminação pública, de creches, escolas. Enfim, algo que colocasse o Poder Público em xeque – e que, amanhã ou depois, quando conquistado – revelasse concretamente a vitória de toda a comunidade.
Conheci Marcão e Jofre em meados de 74/75 na redação de Gazeta do Ipiranga. Marcão era uma espécie de consultor geral e Jofre era responsável pela distribuição do jornal. Diria que eram nossos professores ou numa versão mais atualizada o ombudsman da redação.
Marcão morreu em 78, quando Gazeta do Ipiranga (onde ele e seus colaboradores concentraram todas as forças) circulava com 24 páginas e tinha uma tiragem semanal de 43 mil exemplares.
Um mês antes de seu falecimento, o pessoal foi visitá-lo em sua casa. Andava preocupado com a saúde e o futuro do comunitarismo. “Os líderes não podem deixar que os políticos profissionais invadam nossas entidade. Aí, passa a valer o interesse pessoal sobre o coletivo”.
Antes de nos despedir, fez questão de nos mostrar uma folha amarelecida pelo tempo. Tinha a forma de uma primeira página de jornal. Com olhar de criança, contou a mais encantadora peraltice de sua vida. Quando Getúlio Vargas morreu, houve grandes passeatas. Ele e os seus, então, montaram aquela edição-extra de uma única página, subiram nos prédios e a espalharam por toda a cidade. A manchete também era única: “Que o povo saia às ruas e tome para si os rumos da Nação”.
Zé Jofre só ficou mais alguns meses no jornal após a morte do amigo. Tempo suficiente para preparar a papelada da aposentadoria. Mudou-se para Bonito, no pantanal mato-grossense, onde um sobrinho lhe daria casa e comida. Zé sempre foi um homem só. Considerava que “a luta não permitia certos luxos. Casar, por exemplo”.
Antes de partir, porém, avisou o pessoal “para dar sumiço nuns trens” que não tinha como levar para a nova casa. Lá encontramos, em meio a uma dezena de litros vazios do vinho português Gatãozinho, livros, muitos livros e uma pasta repleta de anotações sobre a tão sonhada “sociedade justa e solidária”.
Sonho este que esses jovens jornalistas acabam de herdar ao colocar nas ruas o primeiro número desse promissor São Caetano Agora.
* (Crônica publicada no primeiro número do jornal
“São Caetano Agora”, lançado em julho de 2003.)