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O menino e os milagres

Menino ainda, olhava desconfiado para os Irmãos Maristas sempre que, nas aulas religião, carregavam as tintas na descrição de um ou outro milagre. Acreditar, acreditar não acreditava, não. Mas, fazia de conta que sim. Afinal, além de ser bom de bola, só jogava na seleção do Colégio Nossa Senhora da Glória quem assistisse às missas dominicais, impreterivelmente às 8 horas.

Às 9h30, dever cumprido, as duas equipes do Colégio entravam em campo para mais uma dura porfia contra esquadras inimigas. Não preciso dizer o fascínio em azul e branco – as cores do Glória – das manhãs de domingo. As inumeráveis partidas invictas eram provas cabais. Os jogos contra outros colégios maristas – Arquidiocesano, Carmo ou Santista – se transformavam em verdadeiros acontecimentos.

II.

Por isso, em nenhum momento, imaginou colocar em risco os dogmas eclesiásticos.

Rezava o terço, lia o missal, fazia as jaculatórias, obedecia aos rituais e aos jejuns da Quaresma, confessava, comungava etc etc. O que pegava mesmo era, digamos assim, toda a dramaturgia dos milagres, sempre cantados em prosa e versos pelos irmãos e professores.

III.

Vivia nesse impasse, mas não chegava se angustiar…

Angústia mesmo os boleiros do Glória começaram a vivenciar quando alguns craques do time completaram 14 anos e estouraram a idade de jogar na categoria infantil. No meio da temporada – e olha que ainda não havia essa brecha para o mercado europeu – era preciso refazer o time, pois logo viriam os tradicionais encontros entre as instituições maristas e ainda em setembro haveria dos Jogos Estudantis da Primavera. Um desafio para os irmãos Demétrius e Fidélis que cuidavam das equipes A (até 14 anos) e B (até 12 anos).

Jogos entre classes durante os intervalos (as equipes eram identificadas por uma faixa transversal que o aluno-atleta colocava sobre o uniforme escolar). Treinos às sextas após as aulas para os que se destacavam; aos sábados à tarde quando esses enfrentavam os titulares.

Enfim, um tour de force para ‘fechar’ os escolhidos para a tropa de elite do Colégio.

IV.

O Paschoal era um amigo queridíssimo. Estavam na mesma série. Gostavam das músicas dos Beatles. Eram palmeirenses e tinham lá outras afinidades. Mas, de bola, é preciso reconhecer o Paschoal nunca foi. Era meio troncudo, desajeitado, corria meio penso para a direita.

Enfim…

Mas, como dizer para o amigo não participar da seletiva. Impossível, deu até uma força. Desejou sorte, inclusive quando o dito lhe disse que era centro-avante.

No íntimo, porém, preparou-se para confortar o amigo após o treino de sexta. Ele não era do ramo, mas não seria ele a lhe dizer.

Que a vida cumprisse, pois, seus desígnios.

V.

E a vida tem lá seus mistérios…

Neste dia, diga-se, os tais foram amplamente favoráveis ao Paschoal. Jogar um bolão, ele não jogou. Não dá para dizer isso. Errou passes de três metros. Perdeu a bola ao tentar os dribles. Mas, nos três rebotes que lhe caíram à frente dentro da área, o amigo enfiou o pé e marcou três indiscutíveis gols.

No sábado, já treinou entre os titulares. No peito e na raça, levou a defesa reserva ao desespero. Parecia um tanque de guerra. Habilidade zero. Pontaria: dez com louvor. Outros três gols. Com a ressalva, dois de cabeça e outro com um inexplicável sem-pulo que só muito tempo depois o Bebeto, aquele do Flamengo e da seleção, consagrou como sua marca registrada…

VI.

Não preciso dizer que na missa de domingo tínhamos outro amigo presente. Mais tarde, nos vestiários, ninguém se surpreendeu quando a camisa 9 voou das mãos do irmão Fidélis para as mãos do Paschoal.

Mais do que merecido…

Não sei se é absolutamente correto dizer que, a partir de então, o menino passou a acreditar em milagres. Nada muito transcendental, mas acontecem assim até divertidamente e não se explicam à luz da lógica.

VII.

Lembrei da história quando a seleção brasileira de futebol se apresentou hoje para a primeira partida das Eliminatórias. A grande atração entre os boleiros era o desconhecido centro-avante Afonso. Sua convocação sempre foi criticada, e continua sendo. Só que no sábado, jogando na Holanda, o cara marcou sete gols em uma partida do campeonato local. E dá-lhe Afonso chegando com a maior moral na Granja Comary. Que Kaká, que Ronaldinho, as luzes todas para o goleador Afonso…

Ninguém vai duvidar se a 9 da seleção canarinho voar das mãos de Dunga para o craque que veio do frio – ele jogou dois anos na Suécia e não ia perder a chance de usar essa imagem…

VIII.

Milagre?

Não sei. Até acho que o Paschoal era melhor que ele…

Mas, é inegável: a vida tem seus mistérios…

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