“Iracema voou
Para a América
Leva roupa de lã
E anda lépida…”
(Chico Buarque)
Sam e Jennifer correm a espantar os pequenos esquilos nos jardins do Central Park.
Iracema ri da peraltice.
Quando chegou a Nova York, as crianças ainda eram bebês rechonchudos, e lindos.
O Sr. e a Sra. Thompson a contrataram como baby-sitter por recomendação de uma amiga que fez lá mesmo, assim que chegou, quando começou a freqüentar as aulas da escola para estrangeiros.
O pouco que entendia do idioma só a deixou mais confusa quando foi apresentada ao casal:
“Brasileira, ok? Sam-ba, fu-te-bol, Pe-lé, cai-pi-ri-nhaaaa.”
Até hoje não sabe se o Sr. Thompson aprovou ou lhe fez restrições.
O certo é que começou naquele dia mesmo.
Eles tinham compromissos profissionais – e depois, pelo que entendeu, iriam ao teatro com amigos.
Dali em diante, nunca mais desgrudou das crianças. A não ser por um breve período, quando cismou de voltar ao Brasil. Já era fluente em inglês e trouxe na bagagem dois ou três certificados dos cursos de pós que fez nas horas de folga. Imaginou que era o suficiente para retomar a vida por aqui longe do chão de fábrica que enfrentou por tantos anos até que se formou em História.
Iracema não gosta sequer de lembrar aquele tempo.
Sentia-se um alienígena na Universidade, pois ninguém entendia o que uma ex-operária chinfrim fazia por ali.
A mesma sensação vivia entre as ex-colegas da linha de produção. Achavam-na pretensiosa.
“Quer ser bacana”, diziam
Aliás, foi assim desde que se entendeu por gente.
II.
Tinha a idade dos gêmeos Sam e Jennifer quando foi morar com os tios em São Paulo depois que os pais se separaram na Bahia.
Sempre viveu longe deles, só com raras notícias que lhe chegavam de quando em quando.
Sabia apenas que cada um seguiu o próprio rumo, constituíram novas famílias – e ela sobrou como um apêndice da vida de ambos.
Às vezes, o pai ligava e, mesmo de longe, surtava a querer lhe controlar os passos.
Depois, passava meses sem ligar.
Na casa dos tios, não a tratavam mal.
Não que fosse um estorvo. Mas, entendia que representava uma responsabilidade, um peso a mais para a modesta família em sua labuta diária.
Por isso, percebia o quanto cuidavam para que logo desse um rumo adequado à própria vida.
Desde cedo, portanto, descobriu-se só.
E nunca foi diferente. Mesmo quando namorou sério e para casar com Marcelo ou se envolveu com Pedro, aquele advogado falastrão, vinte anos mais velho, ou ainda ao se amarrar com Alfredo, vendedor e desquitado que queria, por toda a lei, que fosse morar com ele.
O emprego de recepcionista, o fim do curso na universidade pública, os amores destrambelhados. Foi mesmo um período tumultuado, em todos os sentidos.
Estava com Alfredo quando resolveu topar o desafio do intercâmbio.
Ele insistia para que mudasse de mala e cuia para o sobrado elegante em um bairro discreto da periferia de São Paulo. Teriam uma vida pacata e, na medida do possível, tranquila.
A receita parecia infalível.
Habituara-se a viver com pouco, quase nada – e ele era só atenção e carinho.
Não tinha do que reclamar.
Por fim, iria constituir uma família.
Marcelo era só um garoto e, com ele, viveu o primeiro grande amor. Foi bonito, e triste.
Pedro, ao contrário. Um desses canalhas que toda mulher precisa conhecer ao menos uma vez na vida. Divertido, imprevisível – e incontrolável.
Só aparecia quando lhe dava na telha, e com objetivos deliciosamente claros.
Alfredo, não. Sempre lhe pareceu o porto seguro.
III.
Mesmo assim, e talvez por ser exatamente assim, insistiu na ideia da viagem – e, reconheceu depois, acabou por estragar o dia-a-dia dos dois.
Quando partiu sabiam que, embora houvesse planos para ficarem juntos, não teriam futuro.
Aliás, tempos depois, quando pensou em voltar, cogitou essa possibilidade.
Mas, não se entusiasmou.
Chegou em meados de dezembro – e aqui encontrou tudo exata e tediosamente igual ao dia que partiu, três anos antes.
Arrumou umas aulas de inglês para defender o mês. Mas, nem a casa dos tios, nem o rala-e-rola com Alfredo eram mais os mesmos.
Resultado.
Não esperou o carnaval para se enfiar dentro de um avião. De volta para Nova York.
Decisão difícil, mas logo percebeu: aqui não era mais o seu lugar.
Tudo lhe pareceu estranho e inadequado.
Tentou um jantar decente com Pedro para conversarem. Nem chegou a se concretizar.
Ao ouvir sua voz ao telefone, cantarolou os versos de Chico Buarque:
“Uns dias, afoita
Me liga a cobrar
– É Iracema da América”
Talvez fosse divertido revê-lo.
Seria difícil resistir à tentação. Sabia, de cor, todos os truques do malandro.
E caía em todos, com gosto e volúpia.
Um breve arrepio lhe correu o corpo.
Seria o vento frio de todo fim de tarde ou só o remorso do encontro que não aconteceu?
Não esperou a resposta.
Olhou as crianças e as chamou para perto de si.
Hora de recolhê-las e voltar para a casa da família Thompson.
Não se sentia mais uma intrusa.
Ali, naquele exato momento, era só Iracema.
“Iracema da América”, como Pedro lhe chamou na última vez que ouviu sua voz.
Saudade?
Pode ser. Mas não muita…