Perdoem a cara amarrada
Perdoem a falta de abraço
Perdoem a falta de espaço
Os dias eram assim
Perdoem por tantos perigos
Perdoem a falta de abrigo
Perdoem a falta de amigos
Os dias eram assim
Perdoem a falta de folhas
Perdoem a falta de ar
Perdoem a falta de escolha
Os dias eram assim
E quando passarem a limpo
E quando cortarem os laços
E quando soltarem os cintos
Façam a festa por mim
Quando lavarem a mágoa
Quando lavarem a alma
Quando lavarem a água
Lavem os olhos por mim
Quando brotarem as flores
Quando crescerem as matas
Quando colherem os frutos
Digam o gosto pra mim
1978
Os versos pungentes de Victor Martins para a música igualmente tocante de Ivan Lins retratam o triste momento que o País atravessa envolto em um obscuro período ditatorial.
Elis Regina dá à canção uma interpretação emocionante, é um dos pontos altos do show “Transversal do Tempo”.
Não é raro ver as pessoas chorando na plateia. Comovidas, identificadas com o que os versos tão perfeitamente retratam.
Victor, Ivan e Elis têm filhos pequenos.
Não querem que as crianças cresçam e vivam em um País devastado, sem liberdade.
Ninguém quer…
2017
Quase quarenta anos depois…
Tento assistir ao capítulo de ontem da série “Os Dias Eram Assim”.
No título, a trama usa um dos versos de “Aos Nossos Filhos” para retratar os anos de chumbo.
Não me sinto confortável diante das imagens que vejo.
Mas, há um motivo especial e preciso fazê-lo.
Tenho um sobrinho-neto, o Cacau – na verdade, enteado do Beto, filho da minha mana Rosa – que é ator e vai participar da produção. Ele deve entrar por esses dias como filho do personagem Marcos Palmeira.
Parece que o garoto é bom no ofício; tomara, viva um futuro promissor.
(…)
Mas, como dizia, tento ver as cenas, mas desisto logo.
Nada quanto à produção em si da trama, é o assunto que me constrange e incomoda.
Não me faz bem relembrar aquela página infeliz da nossa história.
Pondero para mim mesmo que o dia talvez não seja o mais adequado.
O confronto entre Moro e Lula trouxe à luz cenas comuns àqueles dias de perseguições e trevas. De volta, nas ruas da pacata Curitiba, o estado policialesco, a apreensão de um possível enfrentamento, a democracia em risco, o desalento.
A bem da verdade, são cenas tristes comuns em nosso dia a dia, independentes dos protagonistas e o papel que representam – e que não me convencem em seus propósitos.
Soma-se a este dia, outros tantos motivos que fica difícil – quase impossível – prever dias mais promissores.
E a canção se faz atualíssima, só que não tenho mais vinte e poucos anos, os sonhos e as ilusões cabíveis a essa idade.
(…)
Escrevi ontem para o amigo que mora na Bélgica que vivemos um apartheid à moda brazuca. De um lado e de outro, todos se fazem de senhores da verdade absoluta, irredutíveis no ponto de vista que mais lhes intere$$a.
Não importa quem semeou tamanho ódio. Como superá-lo em nome de um Brasil efetivamente de todos os brasileiros, parece-me ser um desafio fora do nosso tacanho alcance.
Se não for por esse caminho, o que nos resta?
Arrisco um prognóstico: a implosão de nossa tenra democracia.
Há quem clame pela volta dos militares. Outros sugerem algum Messias de toga. E há aqueles que babam à espera de um Salvador da Pátria que fale inglês (importante, hein!) e vista Ralph Loren.
Não será este o caminho de uma Nação contemporânea e, sim, do retrocesso.
Os dias eram – e continuam assim, infelizmente.
(…)
Só para esclarecer, o nome do garoto é Konstantino Sarris.
Olho nele!