Foto: Arquivo Pessoal
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Assim dizia repetidamente, a troco de nada, aquele senhor que, lá pelos idos dos anos 50. perambulava pelas ruas do bairro operário do Cambuci, onde nasci.
Do homem, diziam coisas.
Que era um andarilho, sem rumo. Não tinha onde ‘‘deitar o esqueleto’’.
Que caíra ‘‘em desgraça com a família’’, pois andara se enroscando com uma dona ‘‘de má fama’’ que morava no Glicério e agora vivia assim, ‘‘num sem jeito danado’’.
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O senhor de nome Irineu (se bem me lembro) devia ter trabalhado com o meu avô, o Carlito, lá na fábrica de chapéus do Ramenzoni.
Foi o que eu deduzi então.
Pois toda vez que o homem passava pela rua Lavapés fazia questão de parar em frente à janela em que o já aposentado vô Carlito se debruçava para saber da vida, do vaivém dos bondes e das belas tecelãs que por lá passavam na hora do almoço.
O vô Carlito, o copo de vinho, o impoluto chapéu na cabeça, a janela e o mundo…
Que tempo era aquele em que claramente se distinguia a verdade da mentira, o certo do errado, o sim e o não da vida e dos amores?
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Era garoto de tudo, ainda me chamavam de Tchinim.
Gostava porque gostava de acompanhar o vô em seu posto de observação.
Reconheço que achava ‘‘um pouco estranho’’ quando o Sr. Irineu se aboletava ao pé da janela.
O vô, não.
Sorria com gosto. E o cumprimentava cheio das expressões do tipo:
“Ora, ora, quem está por aqui!”
ou
“Quem é vivo sempre aparece!”
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Eles se entendiam.
Logo se punham a conversar, de assuntos que me eram distantes e fugidíos.
Verdade.
Não falavam de futebol, do Palmeiras, do grande Altafini Mazola, o craque palestrino que batia o escanteio “e corria pra área fazer o gol de cabeça”.
Também não comentavam as pules e as barbadas do Jockey Club, do alazão Gualicho que havia ganho o Grande Prêmio Brasil no domingo anterior.
Fatos me eram relevantes e motivos de falatórios constantes do pai e dos amigos – a italianada, que se reunia no Bar Astoria para tomar cerveja e jogar Patrão e Sotto.
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Chata aquela conversa em ambos discorriam sobre sindicatos e sindicalistas, relações patrão e empregados, opressores e oprimidos, consciência de classe, greves e organização dos trabalhadores, movimentos sociais, manifestações populares por justiça social – enfim, coisas que me eram absolutamente distantes e desconhecidas.
Talvez por isso só me lembre hoje que, a cada diálogo mais efusivo, a cada impasse e discordância que surgiam na conversa, o Sr. Irineu sacava o seu cálido e definitivo bordão:
“Espera-se uma revolução.”
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A certa altura do papo, os amigos, desconfio, davam como esgotada a pauta das contradições do dia.
O vô Carlito tirava do bolso do paletó a carteira de cigarros ovalados Fulgor, oferecia um para o Sr. Irineu, pegava o dele e acendia cuidadosamente com seus isqueiro de prata.
Em seguida, dava as primeiras baforadas, com o inefável ar de quem sabe das coisas, mas não tem como, nem por onde agir.
Por sua vez, o Sr. Irineu fazia o mesmo com o cigarro. Despedia-se do vô e de mim. Não sem antes perscrutar mais uma vez:
“Espera-se uma revolução.”
“Aguardemos. Aguardemos” – dizia o vô.
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Meus olhos de menino, por alguns momentos, acompanhava a silhueta do Sr. Irineu a caminhar pela rua do Lavapés, a passos lentos, a exalar fumaça e súplicas existenciais.
Era, então, a minha vez de murmurar enigmático:
“Espera-se uma revolução.”
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MEMÓRIA – Arthur Moreira Lima
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