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A grita do Ipiranga *

Morei um bom tempo no Ipiranga.

Trabalhei no jornal local outro tanto.

Ano passado, fui orientador de um livrorreportagem sobre o histórico bairro.

Chamou-se “Ipiranga – Histórias de um bairro que virou metrópole”.

Quer dizer, essa por aquelas, permito-me dizer que conheço o suficiente “as gentes do Ipiranga”, como dizia um amigo que como eu frequentava o Clube Atlético Ypiranga, para entender perfeitamente o que motivou o Conselho de Segurança local, formado por moradores, a tomar a decisão que tomou: entrar com uma representação no Ministério Público Estadual para impedir a realização das festividades de 1o de maio da Central Única dos Trabalhadores no Parque da Independência.

A estimativa inicial é de que, no mínimo, um milhão de pessoas estarão presentes, esparramadas pelo chão sagrado onde (supostamente) se deu o Grito da Independência.

II.

Chão sagrado.

Não se espantem com a expressão, amáveis quatro ou cinco leitores.

É exatamente assim que os ipiranguistas definem aquelas paragens ao redor do hoje poluído Riacho do Ipiranga, onde se aninham o Museu Paulista da Universidade de São Paulo (também chamado de Museu do Ipiranga), o Monumento do Ipiranga, a Cripta onde repousam os restos mortais do Imperador, a Casa do Grito, os Jardins Franceses, o Museu de Zoologia (também da USP) e um dos raros nacos da Mata Atlântica que possui a metrópole.

Há também a Capelinha de Bom Jesus do Horto, tida e havida como a primeira igreja da região. Uma preciosidade que sobreviveu à demolição do Convento das Irmãzinhas, que aconteceu ainda nos anos 80, e que abrigou Santa Paulina, quando chegou a são Paulo no início do século 20.

Trata-se, como se pode ver, de um considerável patrimônio histórico.

Alguns desses bens, inclusive, são tombados pelas instâncias competentes – e devem ser preservados como bens públicos.

III.

Claro que há e/ou pode haver um componente político/ideológico na representação.

Mas, cá para nós, o lugar não é adequado para tamanha manifestação.

Não há a mínima infraestrutura para atender às necessidades básicas da multidão.

Nem vou tocar na questão dos banheiros.

Fico apenas com o trânsito e as condições para estacionamento de veículos.

Só quem mora na região pode afiançar o caos que se instala por horas e horas.

Arremato dizendo que trata-se mesmo de uma questão de segurança pública.

Bem próximos existem dois hospitais – o Ipiranga e o São Camilo – que tem o atendimento comprometido pelo tumulto que se espalha por toda região.

IV.

Sei que dá um charme danado promover-se qualquer evento ali.

Além do que, é garantida a presença de público (até em fins de semana de chuva, tem sempre duas ou três mil pessoas perambulando pelas alamedas e jardins). No entanto, os riscos e inconvenientes definitivamente não compensam.

Em 1981 ou 82, a Globo e outros parceiros promoveram ali, em um 7 de setembro, o que seria a representação do Grito do Ipiranga. Correram boatos de que Tarcísio Meira, ao vivo e em cores, faria o papel de D. Pedro I e que Cid Moreira seria o apresentador.

Um público aproximado de 500 mil pessoas acorreu ao local.

Foi um furdúncio.
V.
Como ontem lhes contava…

Foi um furdúncio.

Alamedas, jardins e até o espaço reservado para a encenação foi tomado pelo público em delírio.

O sistema de som bem que tentou por ordem na coisa toda – mas, os apelos feitos pelo locutor foram todos em vão.

Mal conseguiram preservar o lugar da orquestra que fez a abertura do espetáculo.

Até o reservado para as autoridades civis e militares foi invadido.

Quando o então governador Paulo Maluf chegou, não havia lugar para ele.

Uma senhora – imagino, responsável pelo cerimonial – mostrava-se desesperada:

— Onde eu coloco o governador? Onde eu coloco o homem?

VI.
Em meio à confusão e ao empurra-empurra, como vocês devem imaginar, há sempre um engraçadinho para fazer aquela sugestão de praxe – e de baixo calão.

Diria que não foi um somente que fez o tal comentário. Que, diga-se, a senhora preferiu relevar.

Por fim, achou-se um lugar para o governador, protegido por uma muralha de seguranças.

Alguns cavalarianos do exército, vestidos com fardas de época, estavam prontos para encenar como se deu o Grito do Ipiranga, segundo as versões dos livros oficiais. À frente deles, um tenente ostentando costeletas e barbas postiças seria o infante D. Pedro a bradar a célebre frase:

“Independência ou Morte!”
VII.
Há um novo tumulto na platéia em busca de um lugar para ver melhor a representação do quadro de Pedro Américo – os cavalos se assustam, e um deles derruba o pseudofuturo Imperador do Brasil.

Nada de grave. Mas, a organização resolveu suspender o espetáculo.

Foi uma decepção.

No entanto, quem estava lá reconheceu que este era mesmo o melhor a ser feito.

No dia seguinte, o Parque da Independência estava devastado.

Demorou meses para se recompor e voltar a ser o berço solene da nossa Independência.

* A propósito, citei no post de ontem o livrorreportagem "Ipiranga – Histórias de um bairro que virou metrópole". Seu autores são: Ana Paula Pavanello, Camila Zanforlin, Fernanda Guerra, Gabriela Vieira, Jacqueline Toledo e Victor Ribas.

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