Prometo voltar a Berlim em cinco ou dez anos. Se tudo estiver nos conformes, a saúde permitir e o bolso deixar.
Explico essa quase promessa.
Passei lá os últimos dias – e achei a cidade encantadora pela diversidade de atrações que junta o ontem, o hoje e o amanhã. São incontáveis: a ilha dos museus, as igrejas, as referências históricas em monumentos e praça, a arquitetura que reúne várias escolas, as largas avenidas, o bom sistema de transporte, o trânsito fluente, a torre da Sony, a cúpula do Parlamento etc etc etc.
Berlim tem uma natural vocação para o turismo – é organizada e limpa.
Não exagero dizer que, em médio prazo, rivalize com Paris, Roma, Madrid como um dos principais roteiros turísticos do Planeta.
Basta andar pelas ruas do Mitte, o bairro central, para constatar a multiplicidade de idiomas que se ouve por ali. São turistas de todas as partes do mundo, de mapa na mão, e olhinhos vidrados de curiosidade e prazer.
Um único senão: boa parte da cidade está em obras, o que faz com que algumas das principais referências fiquem sem acesso, ilhadas em canteiros sem fim de restaurações e novas construções.
Como os alemães costumam fazer as coisas com imaginação e rigor, não é difícil que o meu modesto prognóstico se cumpra na medida em que as obras foram ficando prontas.
Um caminhar por Berlim nos faz pensar que, até 1989, existia ali duas cidades distintas – e até conflitantes.
Como conseguiram?
II.
Um alerta aos meus cinco ou seis fiéis e amáveis leitores:
Não saberei destacar o melhor de Berlim.
Sou um turista incidental, um viajante parvo, como costumo dizer.
Posso, sim, e faço com gosto, ressaltar dois momentos marcantes nesta viagem.
O primeiro deles se deu no Memorial ‘Topografia do Terror’, onde permanece ameaçador trecho de 300 metros (se tanto) do Muro de Berlim, além de magnífica exposição de fotos a revelar a tragédia que foi, para a Humanidade, a ascensão e queda do Terceiro Reich.
Uma das imagens ali me chamou a atenção além da conta. Foi o registro de uma manifestação da ‘saudação nazista’, realizada em 16 de junho de 1936. Milhares e milhares de alemães estendem o braço em reverência aos símbolos nazistas. No meio da multidão, flagra-se um rapaz de braços cruzados em notória postura de protesto a toda aquela pantomima.
Seu nome está na legenda da foto: August Landmesse que, mesmo assim, ao que consta, foi convocado para o campo de batalha e lá desapareceu.
Outro momento se deu de maneira casual. Visitávamos uma tradicional chocolataria (existe a palavra?), a Fassbeender & Haut. Ao bisbilhotar o livro de registro dos visitantes, me deparei com o seguinte recado, escrito em inglês:
“Que os dias que a Ucrânia atravessa não sejam em vão. Levem a todos nós a viver dias melhores. Que a Alemanha nos ajude a reconstruir a paz em nosso país. Nós amamos Berlim. Felicidades a todos”. Ecatherine, 07.02.2014
Enquanto houver pessoas assim, com a sensibilidade da Catarina da Ucrânia, acreditem: há salvação para o mundo.
III.
Vesti minha camisa amarela (réplica da que o Palmeiras usou quando representou o Brasil em 1965, na inauguração do Mineirão) e saí por aí…
Não, não sou tão malaco assim.
O que fiz foi descer para um café no bar do NH Mitte Hotel de Berlim, onde me hospedei por alguns dias, na semana que passou.
Todo faceiro e pimpão, acreditei que estaria livre dos olhares invejosos de torcedores dos rivais paulistas como corintianos e sãopaulinos e congêneres. O manto ficou mesmo muito bonito. Tanto que a atual patrocinadora da CBF quis vetar as vendas da concorrente que patrocina o Verdão.
Quando estou por aqui, por motivos óbvios e lamentáveis, não costumo dar essa bandeira pelo risco absurdo que hoje nosso País oferece.
Inacreditável que seja assim, mas infelizmente assim é.
Compenso como posso nas viagens que faço. Sempre levo um modelito para tirar uma onda, até porque o futiba é o grande cartão de apresentação do Brasil no Exterior.
Foi o que fiz nas minhas andanças por Berlim.
Só não contava com a paixão dos gringos pelas coisas do futebol.
— Já está tudo ok para a Copa?
Um senhor de boa estirpe tedesca, a empunhar um canecão daqueles de cerveja, ameaça me fazer companhia à mesa, que tem vista para a movimentada Leipziger Strabe.
Fala em um combalido portunhol, bem melhor do que o meu inglês, registre-se.
Repito o “ok!” sem muita convicção.
Também para não esticar a conversa.
(Não sou tão desacanhado quanto pareço, em terras estranhas e áreas que desconheço)
— Vai ser um carnaval, como se diz, “fora de tempo”.
Ele já se mostra todo senhor do idioma e dos meneios brazucas.
Faço sinal de positivo, como a concordar. Quero mesmo é escapar do interesse do alemãozão. Forte pra caramba para os 60/70 anos que aparenta ter.
— Amo futebol! Se pudesse, eu estaria no Brasil…
Seria bem-vindo, digo (mesmo constrangido, sou um poço de gentilezas).
Mas, o homem não se contém – e arrisca um prognóstico:
— Desconfio que vocês vão sambar no final. A Alemanha será campeã.
Ele ri freneticamente.
Eu devo ter feito aquela cara de contrariado. Prestes a chamar a tropa aliada.
Tanto que ele logo dá um fecho improvável à nossa conversa.
— Son brincadeirra, meu querrido.
IV.
Sou um cara humilde do Cambuci, bem sabem os meus raríssimos leitores.
Gosto de viajar, mas na minha.
Dou uns perdidos daqui pra lá, de lá pra cá.
Só no miudinho, Olho com olhos de ver – nem foto tiro. Ouço mais do que falo – regra de vida, aliás, esteja onde estiver.
Repito: gosto ficar na minha.
Esse tipo de abordagem me deixa assim sem saber o que dizer.
Ainda mais no estranja.
Fico à deriva no idioma.
Diante de uma figura que não conheço, nem de onde surgiu.
(…)
O novo amigo tedesco era falador.
Ao contrário do que eu tolamente imaginava não encerrou o assunto com o bizarro carioquês que em vão tentou imitar.
Fez mais e melhor.
Foi logo se apresentando e se aboletando à meda onde eu estava.
Disse chamar-se Rudi e, assim, que ouviu meu nome – Rodolfo, para quem ainda não sabe, muito prazer -, deu uma gargalhada e um rompante de palavrórios em alemão e inglês.
Ao final, imagino ter entendido o significado.
— Is the same.
Ou seja, éramos xarás.
(…)
Outro café para mim e Rudi, já à mesa, cerveja em punho, se sente parceirão antigo.
Tô arrumado, penso.
Esnucado no canto, sem chance de uma desculpa convincente, como sair dali?
Felizmente, ele voltou ao portunhol.
E sacramenta a primeira confissão do dia: faz hora ali para voltar para a lar doce lar, está feliz, vem de “um encontro amoroso”.
Me belisquei, para saber se estava acordado mesmo ou era delírio? Se estava ouvindo o que estava ouvindo?
Não sei bem o que aconteceu. Mas, me senti naquele Sujinho que fez história na quebrada do Sacomã, no meio dos bebuns e dos chegados da velha redação de
piso assoalhado e grandes janelões para a rua Bom Pastor.
A sacanagem foi inevitável:
— Aí, garoto, mandou bem. Só no arrebenta… Dá-lhe garoto…
(…)
Rudi, desconfio, nada entendeu (ainda bem). Mas, percebeu meu sorriso e a ironia. Justificou-se. Não era nada do que eu estava pensando, os brasileiros só pensando naquilo… e um pouquinho no futebol.
Mais.
Se eu tivesse tempo e paciência, ele me contaria uma bela história de amor.
De olho em uma boa crônica para o blog, digo que tenho todo o tempo do mundo.
— Fique à vontade.
Sou um cara humilde do Cambuci, bem sabem os meus raríssimos leitores.
Gosto de viajar, mas na minha.
Dou uns perdidos daqui pra lá, de lá pra cá.
Só no miudinho, Olho com olhos de ver – nem foto tiro. Ouço mais do que falo – regra de vida, aliás, esteja onde estiver.
Repito: gosto ficar na minha.
Esse tipo de abordagem me deixa assim sem saber o que dizer.
Ainda mais no estranja.
Fico à deriva no idioma.
Diante de uma figura que não conheço, nem de onde surgiu.
(…)
O novo amigo tedesco era falador.
Ao contrário do que eu tolamente imaginava não encerrou o assunto com o bizarro carioquês que em vão tentou imitar.
Fez mais e melhor.
Foi logo se apresentando e se aboletando à meda onde eu estava.
Disse chamar-se Rudi e, assim, que ouviu meu nome – Rodolfo, para quem ainda não sabe, muito prazer -, deu uma gargalhada e um rompante de palavrórios em alemão e inglês.
Ao final, imagino ter entendido o significado.
— Is the same.
Ou seja, éramos xarás.
(…)
Outro café para mim e Rudi, já à mesa, cerveja em punho, se sente parceirão antigo.
Tô arrumado, penso.
Esnucado no canto, sem chance de uma desculpa convincente, como sair dali?
Felizmente, ele voltou ao portunhol.
E sacramenta a primeira confissão do dia: faz hora ali para voltar para a lar doce lar, está feliz, vem de “um encontro amoroso”.
Me belisquei, para saber se estava acordado mesmo ou era delírio? Se estava ouvindo o que estava ouvindo?
Não sei bem o que aconteceu. Mas, me senti naquele Sujinho que fez história na quebrada do Sacomã, no meio dos bebuns e dos chegados da velha redação de
piso assoalhado e grandes janelões para a rua Bom Pastor.
A sacanagem foi inevitável:
— Aí, garoto, mandou bem. Só no arrebenta… Dá-lhe garoto…
(…)
Rudi, desconfio, nada entendeu (ainda bem). Mas, percebeu meu sorriso e a ironia. Justificou-se. Não era nada do que eu estava pensando, os brasileiros só pensando naquilo… e um pouquinho no futebol.
Mais.
Se eu tivesse tempo e paciência, ele me contaria uma bela história de amor.
De olho em uma boa crônica para o blog, digo que tenho todo o tempo do mundo.
— Fique à vontade.
V.
história do ‘novo amigo’ é simples, e bonita. Só poderia mesmo ter acontecido em Berlim.
Ele conheceu Julien quando ambos ainda tinham 18 anos. Trabalhavam na mesma loja de sapato situada nas imediações da área central. Apaixonaram-se e viveram o que, para época, significou um tórrido romance.
Até que o inevitável se deu.
Inexorável, cruel.
A cidade foi cortada pela Muro em 1961.
Julien morava no lado oriental. Rudi, no ocidental.
Não houve tempo sequer para despedidas.
Não houve tempo para considerarem a possibilidade , corajosa, de assumirem-se como definitivos.
– Éramos jovens demais.
(…)
Os anos se passaram.
Inelutáveis, soberanos,
Rudi e Julien reconstruíram suas vidas, como pessoas comuns, normais.
No entanto, um não esqueceu o outro.
Eles se reencontraram dias depois a derrubada do muro, em 1989. (Estavam acompanhados das respectivas famílias em meios às festividades e os reencontros.)
– Brasileiro, vou lhe dizer, foi emocionante vê-la ainda tão linda.
(…)
Dias depois – Rudi não soube precisar quantos – voltaram ao mesmo lugar.
Sozinhos, corações acelerados.
Conversaram, e até tentaram uma reaproximação, digamos, amorosa. Mas, não eram mais as mesmas pessoas.
A partir de então, adotaram, no entanto, um estranho ritual.
(…)
Todos os sábados – ou quase todos – por volta das 10 horas da manhã, ambos se encontram na Checkinpoint Charlie, praça nas imediações do antigo posto de checagem, guardado por soldados americanos na Berlim de então, onde ainda resiste um trecho mínimo do muro de Berlim.
Rudi e Julien se confundem às turbas de turistas que visitam o local – e ficam ali, sentados em silêncio, um ao lado do outro, em um banco sob um antigo mapa da cidade nos tempos da divisão.
Dez, quinze minutos depois (de acordo com o compromisso de cada um), levantam-se e, depois de trocarem sorrisos cúmplices, vão embora.
Desse jeito, me informa o alemão, eles vivem o que restou do amor que um dia sentiram e, desconfio, ainda sentem.
(…)
Ao final da narrativa, Rudi pede outra cerveja imensa e se mostra um tanto melancólico. O homem também me derrubou com a tal história. Agora o vejo como um cara legal, do bem que, a seu jeito, sabe lidar com um sentimento belíssimo. Mesmo assim, continuo sem saber o que dizer.
Deixo escapar, no entanto, a pergunta que me parece óbvia:
— Você é feliz assim?
Rudi se faz ainda mais enigmático. Mas, responde convicto:
– Melhor do que ficar sem vê-la.