Acompanho o bate-boca, cada vez mais exaltado, dos méritos e deméritos das manifestações atuais. E as altecarções de parte a parte me fazem lembrar uma antiga história que, desconfio, já lhes contei aqui – mas não custa rememorar.
Naqueles idos de 1985, a velha redação de piso assoalhado estava mais trepidante do que o habitual. Vivíamos a agitação da campanha eleitoral para prefeito de São Paulo – a primeira depois de tantos e tantos anos de arbítrio.
O então senador Fernando Henrique Cardoso era o favorito de todas as pesquisas de intenção de votos – e o mais cotado entre nós. O deputado Eduardo Suplicy defendia então a emergente bandeira do Partido dos Trabalhadores como outro concorrente. O azarão, o representante da direitona retrógada, tinha nome, sobrenome, o ex-presidente Jânio Quadros.
Os debates na redação eram acalorados, tensos.
Dividíamos em dois grupos de opinião. A maioria votaria em FHC. Outros queriam radicalizar. Eram adeptos da candidatura Suplicy. Queriam ir de três em três.
Democracia é vencer etapas, diziam.
O MDB já cumprira o seu papel.
Era discussão após de discussão. Vivíamos nos alfinetando. Provocações de todos os níveis e calibre.
Amigos, amigos; ideologias à parte.
Só o Ismael Fernandes, o brilhante colunista de TV, não participava desses debates.
Logo o tachamos de ‘janista’.
Sim, confesso, praticávamos bulling com o querido e saudoso amigo.
Que simplesmente nos ignorava:
— Não vou perder meu tempo com vocês.
Para encurtar a história, o final daquele pleito, todos sabem.
Deu Jânio – e ponto.
Nem Fernando Henrique, nem Suplicy.
Ficamos arrasados.
Era o retrocesso, o esbarroar de todos os sonhos de um Brasil progressista.
O dia seguinte foi um desconsolo.
Só o Ismael continuava na dele, sem alterar a rotina de trabalho, com lamúrias e
chororô.
No fim do expediente, enquanto ficamos ali, no rala e rola do fechamento, o Isma se despediu de todos, com um sorriso irônico. Assistia ao nosso desprazer e manchetar “Jânio, prefeito”.
Na soleira da porta, disse “até manhã” em um tom mais alto do que o normal e acrescentou todo satisfeito:
— Querem saber o que penso? Bem feito…
Ele havia votado no homem da vassoura.
(* Post de número 1984)