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No trem das cores…

Desconfio que seja influência dessas manhãs geladas.

Acho que já fui mais resistente ao frio.

A verdade é que, enquanto ando pelo apartamento feito um robô de tanta rigidez nos ossos e músculos, acabo por me lembrar de outro rigoroso dia de inverno.

E fico instado, mesmo que tardiamente, a esclarecer uma dúvida.

Estávamos no trem que nos levaria de Madri a Paris.

Faz alguns muitos anos.

Por estar mal agasalhado, pelo desconforto do vagão de segunda classe, pela paisagem de chumbo que víamos pelas janelas, pelo cansaço natural dos viajantes… Por tudo isso, e mais algumas aflições que agora não me ocorrem, a viagem me parecia interminável, e impiedosa.

Havia até a probabilidade de uma nevasca a nos surpreender em meio às montanhas que, fomos avisados, faria o comboio esperar por horas e horas numa pequena estação aos pés dos Pireneus.

Sou por natureza um cético.

Então, tentei me preparar para o pior.

Mas, não tive lá muito tempo para as habituais lamentações.

Numa das paradas, vi o vagão em que viajava ser invadido por jovens (deviam ter 20 anos, se tanto) que logo deram uma atmosfera toda especial e ruidosa ao espaço.

Menos mal, de tédio não se podia reclamar.

Roupas coloridas, cabeleiras no estilo, sorriso nos rostos corados pelas rajadas de vento.

Enfim, a linda vitalidade dos que ousam sonhar.

Com eles, estava um rapagão mais vivido (aí por volta dos 40) com uma batuta na mão – e, me pareceu, no comando da trupe.

Logo ordenou que a rapaziada fizesse silêncio e se pusesse de pé entre as fileiras de banco.

Que todos olhassem para o tal.

E, assim que movimentou a batuta no ar, a galerinha se pôs a cantar lindas canções do folclore basco.

Que agradável surpresa!

Ficamos encantados.

O tempo passou ligeiro.

A neve, ao que me consta, entendeu que, inspirada pelos jovens cantantes de San Sebastian, poderia continuar sua trilha, mas despencaria do céu em ritmo adequado – e, assim não causaria nenhum estrago mais drástico àquele inesquecível naco do mundo.

A meninada formava uma coral que participaria de um festival de música em Paris.

Feliz coincidência.

Hoje essas cenas me parecem parte de um sonho.

Lembro que o maestro, assim que soube que éramos brasileiros, veio conversar com a gente.

Adorava nossa música.

Conhecia e admirava, nossos artistas. Tom Jobim, Ben Jor, Gilberto Gil, Elis Regina, Hermeto, Caetano Veloso.

Aliás, sobre Caetano, o jovem maestro tinha uma inconfidência a nos fazer.

Foi exatamente este mesmo trajeto que inspirou o baiano a compor a insinuante “Trem das Cores”.

Só que Caetano fez o percurso numa ensolarada primavera, quando as paisagens são belíssimas.

Marotamente, o maestro me disse que, naqueles dias, Caetano não viajava só. Estava acompanhado da exuberante Sônia Braga que, na verdade, foi sua musa inspiradora bem mais que as montanhas, as paisagens e o trem.

Não levei em consideração a parolagem do homem.

Naquele dia, vou ser sincero, sequer atentei para o detalhe.

Ainda não havia a disseminação das famigeradas fake news, mas a turminha sempre foi chegada a um exagero. Aqui, entre as montanhas da Espanha, em qualquer lugar do Planeta.

Concordam?

Hoje, no entanto, bateu uma pontinha de fina curiosidade.

Tantos anos se passaram, será?

Enfim…

Procurei o disco Cores e Nomes nos meus guardados.

Foi lançado em 1982.

Abri o encarte e lá está, encimando a letra da dita canção, a dedicatória, sutil e legante:

‘Para Sônia’

Eita…

 

*Caetano amanhã completa 77 anos. Vida longa ao baiano de Santo Amaro da Purificação…

 

 

 

 

 

1 Response
  • VERONICA PATRICIA ARAVENA CORTES
    7, agosto, 2019

    Deliciosa história para um dia gelado

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