UMA NOVELA BLOGUEIRA – (Foto: Arquivo Pessoal)
DE ALMA TRINCADA, Felisberto se transforma num turismeiro e ruma para o paraíso da Serra da Bocaina. Alguém aí precisa de carreto?
Alguma coisa trincou trincado n’alma de Felisberto.
Há que se entender.
Nem tudo nesta vida a gente pode e deve explicar.
Não deu tempo de o dia terminar, Felisberto é senhor de uma certeza absoluta: não cabe mais ali naquele núcleo familiar. Bastou rever o irmão Marivaldo, conhecer a cunhada (que apesar do nome Doralinda, não se iguala à belezura da ex-amada) e as crianças para reconhecer que todos ali lhes são seres absolutamente estranhos.
Sentiu-se inoportuno.
Pensa nos filhos que imaginou ter com ‘aquela lá’ e se convence que a convivência por ali vai mexer, remexer e tresmexer em áreas malcicratizadas, sentimentos outros, dolorosos, que prefere abafar.
…
Da mesma forma que chegou abruptamente, parte antes do anoitecer.
Ouviu Bosco falar das belezuras da Serra da Bocaina e da estradinha de cascalho e barro que leva ao Parque Nacional, “preservado por lei federal”. Bosco o entusiasmou: “vem gente do mundo inteiro conhecer os encantos do lugar”. A Cachoeira de Santo Isidro tem mais de 80 metros de altura, a mata-virgem, as pousadinhas, a plataforma para o salto de asas deltas, riachos sinuosos de águas cristalinas… A famosa Trilha do Ouro, uma rota de pedras tiradas do fundo dos rios que, nos tempos da Coroa, era usada pelos tropeiros para trazer o valioso metal das Minas Gerais até os portos de Paraty e Angra dos Reis.
Dizem que há até uma rota alternativa, feita pelos contrabandistas de então, que não queriam pagar os altos impostos portugueses. Vendiam o ouro diretamente para os navios ingleses.
– Aquilo deve ser mesmo um paraíso.
…
Guia-se outra vez pela intuição, rumo a São José do Barreiro.
Deixa uns trocados para a mãe, dá-lhe um beijo na testa e bora procurar o amigo Bosco. Ele vai lhe acolher por alguns dias – e Felisberto já sabe como tocar a vida a partir de agora.
Vai ser um turismeiro. Ou seja, trabalhar com turismo no seu linguajar.
E não?
Para isso morou tanto tempo em São Paulo.
Recorda ter visto no noticiário da TV, e não faz muito não, a reportagem sobre um congresso internacional de agentes de viagem. Um bacanudo definiu “o turismo como grande propulsor dos investimentos no país, no futuro que agora começa”.
É só dar um trato no Fuscão, acertar o motor, levantar o facão, colocar correntes nas rodas para os dias mais chuvosos…
O resto fica por conta da habilidade do manobrista e piloto. Chegará em locais inalcançáveis até para os jipeiros.
Alguém duvida?
Sem saber, cita Riobaldo, o jagunço-filósofo de Guimarães Rosa:
“Passarinho quando debruça, já está com o voo pronto.”
…
Felisberto, o Filósofo, logo fez o nome na pequena cidade. Sempre que alguém precisa de um carreto “de pequeno porte”, ele é lembrado e chamado. Quem tem encomendas para cidades vizinhas (Cruzeiro, Lavrinhas, Lorena, Pinda etc) contrata o prestativo Felisberto que, aliás, sempre faz um precinho camarada e é certeza de pronta entrega.
“Servimos bem para servir sempre.”
Ele por ele mesmo gosta mesmo de subir a Serra da Bocaina. Dois (até três) turistas por vez. Aliás, esses ficam encantados com a educação e os malabarismos do motorista e, de quebra, se divertem com as histórias que conta. Histórias de um amor impossível. Um plebeu e a linda princesa que se conheceram num reino distante, com vários castelos de altas torres. Ambos se apaixonaram perdidamente. Mas, havia um compromisso anterior e, como sempre acontece nas grandes histórias de amor, não há verdadeiramente um final feliz.
…
Nesse momento, ao final da história, saca do porta-luvas uma gaita de boca e se põe a inventar canções tristes que só ele próprio sabe existir em seu maltratado coração.
“Somos todas as canções”, diz (sem citar o nome) intimamente à inesquecível mulher da sua vida.
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VERONICA PATRICIA ARAVENA CORTES
15, maio, 2020Passarinho quando debruça, já está com voo pronto, adorei!