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O sem noção

Nunca soube exatamente qual o nome da bela cidade de Salvador Dali:

Figueres ou Figueras ou Figueiras?

O senhor catalão pacientemente tenta me explicar. Percebo alguma ansiedade no rosto do novo amigo e certo ar de contrariedade nas entrelinhas da resposta.

— Figueres, lógico. Que é como diz aqui na Catalunha. Figueras, dizem os espanhóis. E vocês portugueses e brasileiros insistem em chamar de Figueiras.

Não me incomodam as aflições do conhecido com quem puxei conversa neste fim de tarde ensolarado em que estou largado em um desses bistrôs, que servem de tudo um pouco, típicos das pequenas cidades européias.

Nada para fazer, nada para pensar.

Vida que passa à minha frente, como se eu não estivesse ali, como se nada ao redor tivesse real importância.

Logo reparo que o novo amigo acomoda-se em uma das mesas, alguns metros à minha frente, assim que chega uma moça bonita, pouco mais de 20 anos, toda descolada.

Cumprimentam-se com os tradicionais beijinhos, pedem algo para beber e, estranho, pouco conversam.

II.

O silêncio não dura muito, não.

Logo se põem a discutir. Cordialmente, mas discutem.

Não escuto uma só palavra, mas percebo e deduzo pelas caras e bocas da moça.

A bem da verdade, não é propriamente uma discussão.

Ele cobra.

Ela não tira os olhos do visor celular e, de quando em quando, tenta se explicar, como sempre acontece nas altercações entre os sexos.

III.

Aqui, cabe um parênteses:

Quando a cobrança é da mulher, o homem nunca se explica, silencia.

Deixa que as coisas se acomodem por conta e risco.

Mulher, não. Tem explicação e desculpas para tudo. Até para o inexplicável e o indesculpável.

IV.

Tive um dia cheio de boas surpresas.

Visitei a casa onde nasceu ou morou Salvador Dali.

Conheci o museu que abriga boa parte da obra do genial malucobeleza.

Especialmente a ala das jóias me encantou.

Nunca vi nada de tão criativo, de tão exuberante.

E, olhem, que sou um homem simples do Cambuci, duro na queda e nas emoções.

O que não entendo estranho.

Há esquisitices e esquisitices.

Mas, as de Salvador Dali são imbatíveis.

V.

Pois vejam lá vocês, meus caros cinco ou seis amáveis leitores, o que é a vida de um cronista mundano, mesmo em viagem de férias.

Deveria estar rememorando tudo o que ouvi sobre o romance de Dali e Galiá, os anos que passaram juntos. A sorte de um amor tranquilo. (Soube que o casal passava sete meses do ano, isolado de tudo e de todos na belíssima Cadeques).
Mas, no lugar disso, estou aqui ‘pagando’ para entender o que rola na mesa da frente. A conversa não parece ser coisa de pai e filha, não.

Talvez sejam apenas conhecidos. Ou trabalham juntos… Sei não.

Desisto de descobrir.

Pago a conta. Levanto e vou embora.

Eu seria muito sem noção se quisesse transformar essa bobagem em crônica.

Concordam?

VI.

Pois, então…

Na manhã seguinte, no café do hotel, eu os reencontro.

Lá estão dividindo a mesa do desjejum matinal.

Olhei para o casal e fiz questão de cumprimentá-lo com a expressão de quem tudo sabia sobre o mau humor de ontem:

— Olà, amigo! Dormiu bem de ontem para hoje.

Que maldade, gente. Eu sou mesmo um sem noção…

Concordam?

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