Março de 1999.
Toca o telefone à minha direita. Demoro a atender. Espero que alguém, um dos repórteres ou a Marina, responsável pela diagramação, atenda por mim. Dois, três toques. Ninguém se mexe. Resolvo atender. Por mais que me esforce, não consigo reconhecer a voz do outro lado da linha. Diz o nome, que não recordei naquele dia e também não recordo agora, e pergunta como as coisas estão.
Tento ser prático.
— Estão bem. Está tudo bem.
— Que bom!
Neste exato instante percebo quem é. Uma moça esotérica que tinha um programa esotérico numa pequena rádio paulistana. Lembrei no ato. Fiz uma reportagem com ela e conversamos por duas horas sobre a minha vida. Consultei o calendário e vi que estava próximo o começo do ano astral, que é 20 de março. Pensei logo que ela queria ser pauta de uma reportagem sobre as previsões para o novo período. Não cheguei a lhe perguntar. Ela foi logo dizendo:
— Estou ligando só para saber como estão as coisas com você. Na sua família.
Continuei prático.
— Estão bem. Está tudo bem.
— Seu pai está bem?
— Claro. Tem aqueles probleminhas de quem já fez safena e tem a idade que ele tem. Mas, é compreensível.
— Claro, claro. Mas cuide dele.
— Claro.
— Em agosto ele terá um mês difícil.
— Claro, claro.
A conversa mudou de rumo, e logo desligamos. Confesso: não dei a menor bola para o que falamos. Deletei…
II.
Julho de 1999. Mesma redação. Mesmo telefone. Mesma demora em atender.
— Alô, alô. Lembra de mim?
Lembrar, lembrar não lembrava. Aliás, como sequer me recordo agora do nome da moça. Mas, fiquei na minha.
— Oi…
— Então, como seu pai está?
Já vivi essa cena, pensei enquanto recuperava o bate-papo esquisito de março.
— Está ótimo. 8 por 13 de pressão. Maravilha.
— Que bom. Cuide dele em agosto. Vai ser muito difícil. Muito mesmo…
Mais alguns minutos de abobrinha e desligamos.
III.
Só que desta vez não deu tempo de deletar.
O telefone tocou novamente. Atendi às pressas – não me perguntem o porquê. Era minha mãe.
— Seu pai, não está bem. Está saindo sangue do nariz e ele diz que só vai para o hospital com você. O Aldinho (meu sobrinho) está aqui e quer levar o cabeça dura que não quer ir.
— Fala para o pai ir com o Aldinho que eu vou depois e o trago de volta para casa.
Foi o que aconteceu.
Vocês podem não acreditar. Mas, eu deletei a recomendação que a moça fez instantes antes. Bloqueio? Inexplicável. Mas, real.
IV.
Desse fim de tarde em diante, nas semanas que vieram, fomos e voltamos ao Instituto do Coração umas três ou quatro vezes. Repetíamos um ritual. O pai sentia dores no peito, cansaço, mal-estar e lá íamos nós. Lá prontamente atendido. Ficava em observação e voltava para casa no mesmo dia. Virou uma rotina.
Na verdade, o Velho Aldo dizia que não toparia fazer outra operação como fizera sete anos atrás. Temia o cateterismo que fez com que seu coração parasse ainda naquela ocasião. Foi ressuscitado pelos médicos. Passou por uma operação delicada. Depois tivera uma boa recuperação.
À época, por ser o filho homem da família, os médicos me chamaram e disseram:
— O estado de seu pai inspira cuidados. É muito delicado.
Mas, o Velho Aldo saiu bonito e teve uma vida normal. Sempre a postos com novos e velhos amigos para tocar a vida com uma serenidade que o tempo lhe deu e os ácidos comentários sobre os novos tempos. Os netos e bisnetos eram sua alegria. Para mim, sempre sobrou um olhar de carinho e alguma admoestação branda, silenciosa.
— Se cuida, menino. Que tudo isso eu já vivi e sei como é…
É a leitura que hoje faço…
V.
1º de setembro de 1999. Toca o telefone ao lado da cama. Atendo e olho para o relógio. São quase seis da manhã. A voz da minha mãe é de preocupação.
— Seu pai passou mal a noite toda. Teimoso, não quis acordar você. Mas, é melhor ir para o hospital.
— To indo aí…
Quando chego, o casal já está na porta do prédio. O pai apóia-se na mãe. Mas, diz que acha que o pior passou. Sobem no carro. A mãe no banco de trás, no meio, a inspecionar nossas reações. E ele no banco do passageiro, em silêncio.
Rumo para a via Anchieta. Será mais uma rotina de medicação. Tenho aula às 7h30 e certamente não vou poder ir. Depois aviso a secretaria da escola. O pai está em silêncio e parece bem. Tem um hospital no Rudge. Que tal se o levasse para lá e… Não, nem pensar. Ele vai falar um montão. Que ninguém dá importância às dores que ele sente. Sei bem como é. Vamos ao Instituto do Coração, direto e reto…
VI.
Estamos na avenida Paulista, quase no fim. Prestes a entrar naquele desvão que sai na avenida Doutor Arnaldo. O pai não se queixa. Olha para mim. Respira fundo. Pega na minha mão e começa a tremer. A cabeça cai para o lado direito. Minha mãe pergunta o que foi. Prossigo sem responder. Entro direto na emergência…
Dez minutos depois recebemos a notícia. A triste notícia.
Só alguns dias depois, lembro das recomendações da moça que até hoje não consigo lembrar o nome. Me espanto. Mas, prefiro deletar…
VII.
Aldo Martino.
Meu pai hoje completaria 90 anos.