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Saudade do Brasil

"Desconfie do sol que esquenta, mas não aquece…"

01. Os olhos de Bituca estão translúcidos. Vêem o que há anos — sabe-se lá quantos? — não viam. Viajam num tempo do tempo que já se perdeu. Misturam impressões e lembranças.

02. Bituca é o apelido do cantor e compositor Milton Nascimento que na tarde/noite de quarta-feira esteve no salão Carinhoso, aqui no bairro, gravando um quadro para o programa Video Show. Quem o conhece nem discute. Sabe que é o Bituca — e não o Milton — quem está ali admirando-se com os casais dançando, aplaudindo os músicos, trocando informações com o maestro Rosendo… Bituca/Milton se surpreende quando ouve os acordes de Canção do Estudante que a cantora Marlene interpreta com alma e coração. Uma emoção danada, diz o tímido Bituca. Um momento glorioso, inesquecível para a cantora: "vou lembrar para o resto da minha vida."

03. Os olhos de Bituca parecem olhos de saudade do Brasil de ontem. Dos tempos em que era crooner de orquestra e cantava de tudo um pouco pelas pequenas cidades do interior de Minas Gerais. O Brasil que voava nas asas da Panair, o Brasil que ousava provocar o sonho e acreditar na esperança. É um pouco disso tudo que tento resgatar no show que atualmente faço no Palace… Me bateu uma baita saudade, cara. Olha, eu sou mesmo um cantor. Até cometo algumas canções como compositor. Mas, o que pega mesmo, em mim, é cantar — e no palco. Veja que barato esse pessoal cantando, dançando… Há tempos não vivia uma coisa assim…

04. A cidade sitiada por caminhões, os trabalhadores nas ruas por garantia de emprego, o governo ameaçando chamar o Exército para acabar com a desordem e a mídia invertebrada incitando a opinião pública a acreditar que é a força que vai dar jeito no País… O Brasil de hoje não cabe no universo lúdico do sempre menino Bituca. Nunca pensei em fazer outra coisa na vida. Acho que nasci cantor. É o que sabe fazer, é o que faz com a sinceridade de propósitos dos justos e a integridade dos sinceros.

05. Seguramente são esses ingredientes notáveis que hoje não encontramos em nosso homem público. Sua sinceridade de propósito não vai além do que lhe interessa em termos de Poder. A integridade, então, varia conforme o público, horário e canal. E assim caminhamos em meio a mediocridade geral, à miséria cada vez mais abrangente, à vulgarização de valores éticos, morais e sociais. O nosso homem público anda cada vez mais distante da realidade que nos bate à porta todos os dias. Basta ver essa ridícula pendenga entre ACM e FHC sobre o tal imposto para os pobres que, em última análise, é mais um golpete para enfiar a mão no meu, no seu, no nosso ralo dinheirinho de todo fim de mês.

06. E não venha o presidente clamar pelas Forças Armadas para restituir a ordem que, diz ele, está ameaçada pelos caminhoneiros. Aliás, acrescente-se, FHC devia saber melhor do que ninguém. Essa ameaça já perdura por quatro anos e meio sob sua tutela, quando se celebrou o desgoverno e o baile das privatizações, onde todos dançamos ao estridente som dos telefones ocupados ou sem linha, das explosões e dos blackouts, da desmoralização do Real e dos pedágios a cada meio metro de estrada. E agora ainda franze o senho e nos intimida com o rompante das marchas marciais…

07. Seria bom que o presidente e sua trupe ouvissem e professassem os versos que Bituca consagrou: todo artista deve ir aonde o povo está. Seria muito melhor que o presidente soubesse, ao menos, quem é o seu povo…