Fotos: Arquivo Pessoal
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36 – Diante da placidez do mar Mediterrâneo
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Ao ouvir o sotaque lusitano, não tenho dúvidas.
Dispenso apresentações formais – e lhe pergunto na lata:
— É bom viver em NICE?
Estamos no calçadão que dá um encanto natural à Promenade des Anglais. Há cada cem metros, pouco mais, pouco menos, espalha-se uma carreira de dez, doze cadeiras de ferro, fincadas ao chão, que nos permite sentar e confortavelmente mirar a placidez do mar Mediterrâneo.
Estava ali há alguns minutos, acomodado em uma das tais, a remoer as angústias e inquietações de um viajante parvo.
Acabara de ler sobre a cidade.
(… que possui uma bela arquitetura e, mesmo com muitas obras, preserva um certo charme; que delicioso caminhar pelo Passeio dos Ingleses (Promenade des Anglais ) que beira a Baía dos Anjos e seus 5 km de praias; que tem um carnaval maneiro que dura 18 dias, além de grande variedade de atividades; que é chamada de Nissa la Bella e sempre reuniu artistas e turistas de todas as partes da Europa…)
Naquele exato instante, embatucava a ideia que, aliás, sempre me embatuca quando estou em uma cidade que, à primeira impressão, me parece ideal para viver e ser feliz a partir dos sessenta:
– Como será que seria se fosse?
Sou um paulistano nato, de hábitos e costumes arraigados por viver em uma metrópole. Claro que, com o passar dos anos, a coisa toda perde lá o seu viço, as suas cores. E a gente, modestamente, começa a pensar em fugir para algum canto do mundo, onde não precisamos dar conta das expectativas alheias, menos ainda das nossas próprias expectativas de ser e acontecer.
Pois, estava eu a olhar o Mediterrâneo e a divagar sobre o tudo e sobre o nada, quando um senhor se acomoda a duas ou três cadeiras da minha, cantarolando uma canção do Roberto.
“Você meu amigo de fé, meu irmão, camarada…”
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Chamou a minha atenção de primeira, até porque não é tão comum ouvir nossa língua pátria nesse cantão do litoral da Côtê d’Azur.
E mesmo sem ser o amigo de fé, nem o irmão, menos ainda o camarada, tomei coragem para desembuchar a instigante questão:
— É bom viver em Nice?
O homem, de uns 40 e tantos anos, olha-me com curiosidade, primeiro; e depois se mostra afável:
— Brasileiro?
Faço que sim com a cabeça, e esboço um sorriso de quem está ávido pela resposta.
E o portuga continua na maior simpatia:
— Futebol, copa do mundo. Carnaval… Delícia, delícia, assim você me mata… Adoro Tom Jobim.
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Achei de bom tom não lhe explicar a diferença que existe entre o Telló e o Jobim, diante de tamanha manifestação de, digamos, brasilidade em frente ao Mediterrâneo.
(Mediterrâneo que, diga-se, continua, por ali, plácido e misterioso assim como minha vontade sempre adiada de me esconder em algum canto do mundo.)
Desisto de uma nova pergunta, pois desacredito do que ouço em seguida.
— Estou pensando em mudar-me para o Brasil. O que achas?
Aí, foi a minha vez de, sorrateiramente, assobiar uma velha canção do Roberto e sair à francesa.
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* Publicado originalmente em 15/03/2013
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Um adendo
Achei Nice uma cidade – e tanto. Belíssima!
Bonita, bem ajeitada, com um calçadão à beira-mar que é um primor.
Dizem até que o melhor do carnaval francês – seja lá como for e o que for – é ali que acontece.
Adoraria ficar mais tempo por lá. Só para olhar, na quietude das horas vadias, o Mar Mediterrâneo.
Ou mesmo as pessoas caminhando na praia pedregosa.
Por isso e tudo mais que o fato envolve, fiquei estarrecido quando soube do atentado de julho de 2016 na principal avenida, a dita e citada Promenade des Anglais, que matou 86 pessoas e feriu 456.
Um absurdo que ainda hoje me entristece lembrar.
Um amigo que mora na Bélgica – e por lá passou dois anos depois – me disse que a tragédia deixou marcas indeléveis na cidade.
Há uma desconfiança generalizada em tudo e em todos.
Retruquei:
– Então, aquela tranquilidade, aquela paz não existem mais?
A resposta, inevitável:
– Aquela paz não existe em Nice ou em qualquer outro lugar do planeta.
Triste.
VERONICA PATRICIA ARAVENA CORTES
9, setembro, 2020É vero…