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Você tem FOME de quê…

Impõe-se à construção de uma nova sociedade, de justas relações entre homens e mulheres e entre todas as pessoas que buscam alternativas solidárias. O resgate da dignidade humana, especialmente dos pobres, não pode limitar-se à assistência emergencial, mas exige que todos participem na transformação da sociedade e da economia, promovendo uma ordem voltada para o bem comum. O Reino é vida nova, defesa incondicional da pessoa humana como centro de decisões políticas alicerçadas em princípios éticos; uso sóbrio e responsável dos recursos naturais, com respeito à biodiversidade. O Reino fundamenta-se na solidariedade, cuja raiz ‘é a paz, fruta da justiça’ (Is 32,17) que congrega irmãos e irmãs ao redor da mesa, no banquete da vida e na partilha do mesmo pão.

Trecho da homilia Alimento, dom de Deus, Direito de Todos, do presidente da CNBB, dom Jayme Henrique Chemello, na missa do dia 14 de abril, em Aparecida.

I.

O repórter desceu atônito do helicóptero. Não foi o medo de voar que o deixara assim. Afinal, não era tão raro acompanhar o repórter-fotográfico pelos ares para fotos aéreas numa das pautas que desenvolviam, sempre que possível, sobre o meio-ambiente. Gostava do assunto: preservação da fauna, da flora, da vida. Gostava mais de fugir da rotina das redações e, principalmente, de fugir das tristezas e tragédias que, queiram ou não, os jornais obrigatoriamente precisam noticiar cotidianamente. Naquele dia ensolarado, um presente dos céus, voaria pelos arredores de São Bernardo para uma reportagem especial sobre a Mata Atlântica.

“Seria mamão com açúcar”, como gostava de dizer o fotógrafo que o acompanharia na aventura. Hora e meia depois de sobrevôo tranqüilo, o amigo era só entusiasmo com os belos registros aéreos que conseguira fazer da devastação que toda área vem vivendo nas últimas décadas.

O repórter voltou para a Redação em silêncio. O rosto crispado, os olhos revelavam preocupação – e medo. Isto mesmo, medo do que acabara de ver.

“E o que você viu lá de cima”, perguntou o parceiro, ávido por arranjar um cúmplice para sua alegria.

“O que vi?” – respondeu, sem alterar a expressão de desalento. “Vi alguns vietnãs de miseráveis que cercam nossas cidades, prontos a explodir”.

II.

Não houve qualquer outro comentário durante todo o restante do trajeto. Tempo em que o repórter pôde repassar anos remotos, quando costumava a freqüentar aquele lugar, às margens da represa Billings, com o pai e alguns amigos, para andar de barco, pescar, divertir-se com uma bola num canto qualquer que pudesse se transformar num glorioso estádio de futebol. Tinha a imagem daquele lugar como a de um paraíso árvores, riachos, animais, peixes, flores e a imensidão da represa – tudo, ali, convivendo harmoniosamente.

E o que vira agora lá de cima? A região havia se transformado num monstruoso aglomerado de submoradias, onde sequer as áreas de mananciais foram respeitadas pelo contingente dos desvalidos. Entendeu o porquê de tanta violência e a degradação do tecido social. Entendeu mais: o amado e pacífico País – a começar pelos grandes centros urbanos, mas não só eles – estava mesmo a enfrentar uma guerra civil absurda, sem qualquer ideologia, em que o ‘inimigo’ não tem rosto e pode nos atacar em qualquer esquina. Por um trocado, um celular, um par de tênis. Pior: somos vítimas e algozes, ao mesmo tempo.

Lembrou da homilia de Dom Jayme Henrique Chemello e entendeu melhor a epígrafe daquele documento: “Daí-lhes vós mesmos de comer”. (Mc 6,37)

As palavras de Dom Jaime são mais do que oportunas. Retratam uma situação que precisa e pode mudar.

“Apesar de todo o progresso tecnológico e de toda a modernização da economia, a fome persiste como o indicador mais visível e grave da situação desumana que coloca nosso país entre os mais injustos do Planeta. As desigualdades sociais crescem como fruto deste modelo de globalização do mercado, que concentra poder e riqueza enquanto faz diminuir os postos de trabalho nas atividades econômicas na cidade e no campo. Degrada a natureza, causa desastres ecológicos e multiplica, a cada dia, o número de excluídos. Existe, entretanto, alimento suficiente para todos e a fome e a miséria se devem à má distribuição da terra e à desigual repartição dos bens e da renda. Daí brota a interpelação.
Como pode uma população cristã, em sua maioria, conviver com tal situação? A consciência cristã clama, pois nada pode justificar que tantos irmãos e irmãs padeçam fome”.

III.

Entra na Redação a repetir mentalmente para si a frase: “Dai-lhes vós mesmos de comer”. Em frente ao computador, na internet, busca informações sobre o tema que agora não lhe sai da cabeça. O que é a fome? A quantos atingem? Conseqüências? E o Brasil? Para cada questão a resposta ainda mais pertubadora.

— Fome é a escassez de alimentos que, em geral, afeta ampla extensão de território e um grande número de pessoas.

— O relatório anual sobre a fome no planeta, divulgado pela Organização para Agricultura e Alimentação (FAO), entidade ligada à Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 826 milhões de pessoas são vítimas da fome em seu estágio mais avançado (a fome crônica), o que representa quase 1/6 população mundial.

— As conseqüências imediatas da fome são a perda de peso nos adultos e o aparecimento de deficiência no desenvolvimento das crianças. A desnutrição, principalmente devido à falta de alimentos energéticos e proteínas, aumenta nas populações afetadas e faz crescer a taxa de mortalidade em parte pela fome e também pela perda da capacidade de combater as infecções. Cerca de 5 a 20 milhões de pessoas morrem anualmente por causa da fome e muitas delas são crianças. — As causas da fome crônica são pobreza, distribuição ineficiente de alimentos, reforma agrária precária e crescimento desproporcional da população em relação à capacidade de sustentação.

— Os países que mais sofrem com a fome são: Somália em primeiro, Afeganistão em segundo e Haiti em terceiro. Na Somália, há um déficit de 490 calorias diárias nas pessoas atingidas pela fome. No Afeganistão, o índice é de 480 e no Haiti, 460. Para se ter uma idéia da gravidade da situação nesses países, basta dizer/escrever que a ausência de 100 calorias diárias por pessoa é considerada fome crônica.

— No Brasil, com base em números de 1987, sabe-se que 40 por cento da população (50 milhões de pessoas) vivem em extrema pobreza. Nos dias atuais, sabe-se mais: 1/3 da população é mal nutrido, 9 por cento das crianças morrem antes de completar um ano de vida e 37 por cento do total são trabalhadores rurais sem terras. Há ainda o problema crescente da concentração da produção agrícola. E mais grave: a produção para o mercado externo cresce enquanto diminui a diversidade de produção de alimentos para o mercado interno. Ao lado disso, milhões de pessoas vivem em favelas na periferia das grandes cidades. O caso das migrações internas é outro grave problema. Grande parte dos favelados deixou terras de sua propriedade ou locais onde plantava sua produção agrícola. Nos grandes centros, essas pessoas vão exercer funções mal pagas, muitas vezes em trabalho não regular. Quase toda a família trabalha, inclusive as crianças, freqüentemente durante o dia inteiro, e alimenta-se mal, raramente ingerindo o suficiente para repor as energias gastas. Nesse círculo vicioso, cada vez mais famílias se aglomeram nas cidades passando fome por não conseguir meios para suprir sua subsistência.

IV.

E a solução? No entender da FAO, a solução para o problema estaria na implantação de um sistema mais justo e os governos deveriam dar ênfase a projetos sociais que gerassem o bem comum. Deveriam ser investidos recursos na agricultura familiar, desapropriação de terras improdutivas, onde os assentados passariam a produzir os próprios alimentos e fornece-los à cidade.

E mais: investimentos em programas de combate a fome e a miséria bem como o abastecimento de água potável e saneamento básico para toda a população. Educação e saúde também deveriam ser prioridades dos órgãos competentes. Ainda, segundo a FAO, os países com maior número de famélicos no mundo são os que apresentam maiores dívidas externas.

Por isso, a entidade defende o perdão da dívida externa desses países mais pobres. Bastou uma rápida passagem pelo Brasil do relator da ONU para Direito à Alimentação, Jean Ziegler, para a constatação em níveis internacionais de que o País não cumpre o direito à alimentação. Ziegler chefiou uma comissão da entidade que avaliou a fome por essas plagas tropicais.

Segundo os índices oficiais, o número de famélicos era de 23 milhões. Mas, representantes da Oposição, como o senador Eduardo Suplicy, lhe garantiram que nada menos que 44 milhões de brasileiros sofrem com a fome permanentemente.
O problema da terra é uma violação grave ao direito à alimentação. O latifúndio mata gente. As pessoas no Brasil morrem vítimas da ordem social, disse o relator. Ele apontou ainda outros dois fatores, além do latifúndio, como causadores do problema: a baixa renda da população e a falta de uma política completa e integrada na área social.

O repórter pegou a caneta e fez algumas anotações no bloco de notas.
“Sistema capitalista mais globalização. Novas tecnologias substituem a mão de obra humana. Resultado 1: o aumento do desemprego. Resultado 2: o aumento da miséria e da violência. Resultado mais assustador: a fome endêmica”.

Mal fechou aspas, foi informar ao editor que havia mudado a temática da reportagem especial. O editor sugeriu o título:
Você tem FOME de quê… (grafado assim mesmo para dar destaque ao assunto). Ele já sabia até por onde começar (pela homilia de Dom Jaime) e terminar: pelo depoimento de um psicólogo amigo…

V.

“Entre a simplicidade e a genialidade de um Betinho, o mundo vive contrastes poderosos”.

A declaração é do psicólogo, professor universitário e diretor do Consultório de Psicologia e Resignificação Humana, Alexandre Rivero. De um lado, ele detecta uma população de famintos sem poder consumir alimentos, marginalizada dos produtos da sociedade contemporânea à base dos fast-food. De outro, em número cada vez mais reduzido, uma população consome avidamente os pasteurizados, os disque-pizzas, as calorias excessivas, os diets e os lights.

“Vivemos uma verdadeira miscelânea”, diz o psicólogo. “Quem pode deve consumir a cor mais bonita, o odor mais atraente, a promessa de gratificação afetiva, de realização profissional no merchandising e a senha é a degustação. Tudo pelo prazer sensorial, impulsivo e consumista”.

Segundo Rivero, a contradição se expressa na busca ansiosa pelo comer e pelo controle da alimentação. Aqui, há o choque entre um mundo fragmentado por zonas de miséria e riqueza, obesidade e fome, o corpo esbelto e o desejo de comer, comer, comer. Neste cenário, diz psicólogo, se situam os transtornos alimentares como aneroxia, bulimia e o comer compulsivo. A prática excessiva de exercícios físicos, vômitos provocados e a utilização de laxantes e diuréticos vem aumentando a incidência entre adolescentes e adultos numa busca pelo corpo ideal. E conclui:

“O mundo tem se alimentado mal entre os extremos da fome e da obesidade. É mesmo um dos pontos mais complexos do Planeta e se espalha por uma área multidisciplinar. Atrai interesses do campo da nutrição, do marketing, da economia, da política, da psicologia… Superar a fome e a obesidade talvez seja o grande desafio para uma vida saudável em todos os sentidos e com todos os proveitos sociais”.

Matéria publicada no jornal católico “O Carpinteiro”

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