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O amor, a verdade, a vida…

"Um dia os intelectuais apolíticos do meu país serão interpelados pelo homem sensível do nosso povo. Que lhe perguntará sobre o que fizeram enquanto a Pátria se apagava lentamente como uma fogueira doce, pequena e solitária." (Otto René Castillo)

01. Quem se lembra do personagem Mário Rutuolo, o carteiro do filme II Postino (O Carteiro e o Poeta, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro em 96)? Foi o derradeiro — e magnífico — papel do ator Massimo Troisi que faleceu logo após as filmagens. O personagem pareceu-me exemplar quando comecei a pensar no tema da coluna de hoje — a última do ano e que deveria, ao menos em tese, discorrer sobre os desafios e compromissos deste fim de século/milênio.

02. Não sei porque cargas d’água o filme de Michael Radford vai preenchendo a tela do computador e me arrebatando os sentimentos nesta manhã de quarta-feira. Inspira-se no suposto exílio do poeta chileno Pablo Neruda (interpretado por Phillippe Noiret) numa pequena ilha italiana, onde faz amizade com o carteiro do lugarejo. Fascinado pelo modo de vida de Neruda e pelo poder de sedução da poesia junto às mulheres, Mário, mesmo um semi-analfabeto filho de pescador que resfria-se de medo só de pensar em enfrentar o mar, tenta entender o que é metáfora pois está disposto, também ele, a escrever versos. Apaixonado pela belíssima Beatrice, recorre ao poeta para lhe ensinar o encanto das palavras.

03. Pacientemente, Neruda procura explicar tecnicamente o processo de construção de um poema. Mas, sem qualquer êxito… Ambos estão sentado na praia diante do belíssimo azul do Mediterrâneo e, como último expediente, o poeta se põe a recitar um novo soneto que relaciona o imprevisível ir e vir das ondas com a vida e os corações apaixonados. Para o poeta, não existe amor impossível. Sem amor, não somos nada…

04. Quando termina, pergunta emocionado: e então gostou? E o humilde carteiro faz, sem se dar conta, seu primeiro verso e, de imediato, passa a entender o que é metáfora: mas eu me sinto como um barco num mar de palavras.

05. Muitas vezes, você e eu, prezadíssimo leitor, podemos sentir a mesma perplexidade diante da enxurrada de acontecimentos que nos traz a vida atual. E, assim como Mário, perdemos o prumo num mar revolto de palavras, fatos, pessoas, sentimentos, contratempos, informações… Embora vivamos a era do Conhecimento, a unica certeza que hoje temos é que não temos certeza de nada. A sociedade vive o mais rotundo dos contrastes. Olha curiosa para o futuro, assiste e aposta na eficiência da Ciência e da Tecnologia para uma série de infinitas conquistas. No entanto, sequer consegue resolver uma questão fundamental: as desigualdades sociais.

06. Há em todo o Planeta 780 milhões de pessoas que passam fome. E não possuem qualquer perspectiva de mudar esse quadro nos próximos tempos — comece o próximo milênio agora ou só em 2001. Mesmo que o homem tenha o desplante de fundar uma filial da Disney World em Marte, nada muda para esse contingente de desvalidos que, no Brasil, chega a 13 milhões.

07. Eis o extraordinário desafio do poeta, do carteiro, de todos nós que temos acesso a algum tipo de formação e conhecimento. Não dá para ser feliz por inteiro enquanto persistirem essas abomináveis discrepâncias sociais. Não podemos nos deixar subjulgar pelo silêncio, pela indiferença ou pelo medo da mudança. O mesmo homem não passa duas vezes pelo mesmo rio. Se praticarmos o amor em toda sua plenitude, praticaremos a verdade e reacenderemos a vida… Tão bela, tão fascinante, tão encantadoramente misteriosa quanto a visão do nosso Museu do Ipiranga, todo iluminado, nessas noites claras de dezembro. Feliz milênio novo, caro leitor…

Nota do autor: No filme o carteiro Mário, após aprender a ler e a escrever poesias, engaja-se no movimento socialista da Itália e morre durante a repressão pelo Exército a uma manifestação nacional em Roma, onde faria uma saudação em nome do povo italiano.

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