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Osorno

Janeiro de 2005. Chegamos à estação de esqui nas escarpas do vulcão Osorno. Estamos a mil e duzentos metros do nível do mar e a vista é lindíssima. De um lado a cordilheira dos Andes e lá, distante, o imenso lago de águas azuis esverdeadas. Não paramos para reparar nesta rara pintura. Descemos da van, que nos trouxe até esses confins, com olhos grudados no ir-e-vir do teleférico. A idéia é subir mais 300, 400 metros e chegar ao local onde a guia garantiu ainda haver neve. Estamos, pois, ávidos por olhar, caminhar, escorregar, tocar, fazer e atirar bolas de neve.

Neve, neve, neve…

Era só disso que falávamos desde o hotel até aqui. Havia a possibilidade da engenhoca não estar funcionando, devido ao mau tempo, e acabar com a alegria de todos – dois são chilenos, os demais brasileiros. Mas, o sol apareceu à medida que subíamos pela estradinha sinuosa, rumo ao mais estiloso dos vulcões chilenos, o Osorno.

Um certo desconforto físico me fez repensar o projeto das alturas. É a velha e conhecida Sra. Dor nas Costas que não permite (in)certas brincadeiras. Já me imaginei travado sem poder saltar a girar e girar e girar naquela cadeirinha mambembe. O melhor é ficar e esperar o retorno dessas crianças crescidas.

Além do que, a construção de madeira, que abriga a tal estação, me parece acolhedora. Tem uma lanchonete com janelas amplas e – me garantem — faz um bom chocolate quente. Melhor, está vazia. Só alguns funcionários de caras simpáticas à espera de turistas que, diga-se, são mais raros no verão.

Escolho um lugar confortável com vista para o cume do vulcão (que dizem ter 2.250 metros de altitude), a cordilheira e o lago – ‘lagoa é pequena, lago é maior’, ensinou a guia loirinha no meio do trajeto e me fez lembrar as aulas de geografia do primário.

Aproveito essa hora imprecisa de uma tarde ensolarada de janeiro para rabiscar um texto curto que reverencie o novo ano. Um texto tão incerto quanto a silhueta do Osorno. Que ora se exibe inteira, esbelta, com sua neve eterna a lembrar o similar famoso, o Fuji, no Japão. Ora se deixa enfeitar por um colar de nuvens claríssimas – e nem por isso perde a majestade entre tantas outras elevações andinas.

Um texto curto que fale das férias, invariavelmente, a nos escapar pelo vão dos dedos. Dos planos que não fiz nesta virada de ano. Dos sonhos que preferi não sonhar. Das idéias esparsas que tenho sobre tudo e sobre todos. De sentimentos e desejos e conquistas e compromissos e de que logo, logo estarei de volta ao trabalho…

Viver e deixar viver. Simplificar – eis o lema. Ano passado, listei uma porção de objetivos que gradativamente fui deixando de lado, com o correr dos dias.

Ao pensar nessa listagem, ainda à minha espera em algum escaninho da alma, uma discreta inquietação me faz deixar o ambiente fechado e protegido da estação. Caminho até um mirante improvisado a alguns metros adiante. O silêncio me surpreende. Idéias e quereres se aquietam diante do privilégio de estar ali e olhar a imensidão – o agrupamento de montanhas, o lago que parece um mar — e ouvir agora a suave canção do vento.

Não é difícil entender que trabalho o ano todo para viver momentos como este.

Mas, pondero, não sou só eu…

Imagino o entusiasmo do pessoal lá em cima – as cadeirinhas do teleférico sobem e descem ainda vazias. Quanto tempo eles ficarão por lá? Quem se importa? Estamos todos bem, em paz. Aliás, como deveriam ser os 365 dias do ano. Afinal, o espetáculo da vida também é surpreendente – e quase sempre não nos damos conta disso. Tentamos corrigir o ontem, planejamos o amanhã e esquecemos de viver o hoje.

Por isso, é bom estar aqui. A vida tem mesmo lindos e desafiadores mistérios. Exemplo: agora, diante deste cartão postal, há uma inconteste paz interior e a vontade de prorrogar o tanto quanto possível este brevíssimo instante. Como disse o poeta, “na vida das minhas retinas tão fatigadas jamais esquecerei este acontecimento”.

Mas, no mesmo soneto, Drummond alerta: há uma pedra no meio do caminho, no meio do caminho há uma pedra… Alguém, aliás, não tão poeta, mas igualmente sábio, disse que a felicidade está dentro de nós. Há quem saiba lidar com ela. Há quem só faça espanta-la mesmo quando se vê a um passo de conquista-la…

“Preciso pensar melhor”, é a desculpa de sempre. Assim tentamos racionalizar e nos entendermos mais humanos. Entre o quase sim e o provável não, protelamos o sonho em troca de um certo modelo social. Um modelo que vai se transformar em nosso escudo, caso as coisas não saiam exatamente como imaginamos. Vai desculpar um eventual fracasso. Ë assim no trabalho, no amor, na vida…

“Fiz o que uma pessoa sensata faria” – argumentamos cheios de razão. E, muitas vezes, perdemos a chance de exercitar a deliciosa loucura de ser nós mesmos.

‘Então? Como ficamos?’ – queixo-me ao Osorno, indiferente a tudo e a todos. Tenho como resposta um naipe de nuvens brincalhonas a encobrir o topo do vulcão. Com suas acrobacias, me fazem imaginar figuras diversas e mágicas. Recordo que, quando era menino, me punha a olhar o céu deitado no cimento do quintal – naquele tempo, as casas, mesmo as mais modestas, tinham quintal e cachorro e mesmo algumas hortaliças.

De repente, incorporo o menino que com tudo se encantava e se imaginava um personagem dos contos de Malba Tahan. E passo a entender o que essas espertinhas querem me dizer:

— Ora, tudo é possível, meu caro… Tudo, aliás, não passa de uma vaga idéia para um texto curto que, repare, já está na hora de ‘fechar’.

E, cúmplices de meus devaneios, pedem à brisa que me sussurrem a verdade das verdades: “Com sorriso de orelha a orelha, a moçada retorna do passeio na neve. E grita e acena e festeja. Ouça as divertidas histórias que tem para lhe contar. Entenda a celebração da vida, caro amigo, pois só o agora existe. O ontem já se foi e o amanhã a Deus pertence. ”

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