Contei essa história ontem em sala de aula, e os alunos se divertiram com o revisor trapalhão que fui e, desconfio, sempre serei. Nas lides jornalísticas, como narro a seguir, e na vida — por mais que faça uma releitura dos meus passos, não consigo deixar de ir onde meus sonhos me levam. E, imagino, alguém me espera…
Mas deixemos de De…vaneios (ô palavrinha complicada, sô), e vamos aos fatos.
I.
Corriam soltos os anos 80, e eu corria solto atrás da grana.
Aliás, como ironizava um antigo sucesso do compositor Marcos Valle:
“Corro por dinheiro, ah, ah…
Até jogar no chão meu corpo inteiro, ah, ah…”
(Não me pergunte o significado desse ah, ah… Nem eu, nem o próprio Marcos Valle saberemos lhe explicar. Eu, porque nunca soube. Ele, porque disfarçou quando lhe perguntei numa entrevista: “Sei lá, acho que é porque as meninas do coral inventaram na hora”).
II.
Trabalhava no jornal, e de resto me virava com os frilas que aparecessem. Sem distinção de credo, raça ou cor…
Houve uma época, por exemplo, em que fazia a revista maçom A Verdade sem ser maçom. Diagramava a revista do São Paulo Futebol Clube, mesmo sendo torcedor do (vou ficar de pé para escrever) Palmeiras. Era secretário gráfico do jornal O Alborada, da colônia espanhola e não sabia dizer “Olé” em castelhano. E ficava à disposição de uma moça bonita, chamada Marilene, para lhe ajudar no fechamento de Gazeta de São Bernardo.
Isso sem falar das matérias de música que sempre gostei de escrever – e me eram indispensáveis para me entender jornalista…
Aliás, foi com os suados proventos desse lufa-lufa que consegui comprar meu primeiro carro zero quilômetro, um inesquecível Corcel II marrom de tantas e singelas lembranças…
Inclusive a de que, depois de alguns meses, começou a ficar opaco como os rinocerontes de Jacarta…
(Calma, calma, vocês logo vão entender o porquê da referência).
III.
Nesses tempos imemoriáveis, a minha semana terminava com a secretaria gráfica do Jornal da Orla. O semanário ainda hoje circula no Litoral paulista, aos domingos. E até então era feito na pequena, mas pulsante, oficina de Gazeta do Ipiranga, capitaneada pelo Valtão, ali na rua Bom Pastor, em São Paulo.
Toda sexta, por volta das 18 horas, lá estava eu a postos para o embate. Óbvio que o fechamento entrava madrugada afora e, não raras vezes, amanhecíamos por lá mesmo, quase sempre a esperar o anúncio das Casas Bahia que nunca chegava ou a procurar um PMT de uma foto (ou seja a foto da foto em condições de ser impressa) que havia desaparecido, entre outras agradáveis encrencas.
É de se imaginar, portanto, que todas chegávamos algo cansado da labuta da semana e com uma pressa danada de ir embora. Afinal, era sexta-feira, internacionalmente consagrado como dia do que hoje chamam modernamente de balada.
IV.
É preciso dizer que computadores ainda eram ETs entre nós, jornalistas. Escrevíamos nossas reportagens na máquina de escrever em laudas. Posteriormente, elas passavam para o editor que as encaminhava para o diagramador que fazia o desenho da página.
Com as devidas marcações de tamanho de letra, estilo de fonte e largura de coluna, seguiam nas mãos de boy para a Digitação, onde simpáticos rapazes e belas moças teclavam letra por letra tudo o que estava nas laudas.
Nossas matérias se transformavam em um enfileirado de letrinhas com forma e tamanho para caber numa página de jornal. Essas tiras iam para um departamento chamado Past-up, onde eram coladas por arte-finalistas, organizadamente, em acrílicos do tamanho adeqüado à página de jornal. As páginas eram matrizes para a fotomecânica que a transformava em filme, que depois se transformariam em chapa de zinco até ir para a impressora.
Um processo detalhado. Cada departamento tinha um prazo para cumprir o ritual, passo a passo. Assim, dava-se um fluxo normal, com todos a produzir seqüencialmente e a cumprir prazos.
V.
Ainda em meio a esse bololô, havia um departamento chamado Revisão. Funcionava assim, em duplas. Um dos revisores lia, em voz alta, o xerox do texto digitado. O segundo revisor acompanhava, atento, os originais da reportagem. Assim, se evitava os chamados erros de digitação como ‘palavrascoladas’ ou com ‘letrasss’ a mais ou outras falhas do gênero.
Feito isso, o texto voltava para a digitação, onde eram feitas as emendas e seguia o trâmite natural.
Não raras vezes, a Revisão, com o necessário preciosismo, atrasava todo o andamento do jornal. Enquanto pilhas de textos acumulavam-se sobre a ampla mesa de trabalho, os revisores não tinham como apressar o ritmo da leitura. Era natural nesta hora, a pressão dos demais funcionários, parados a espera de serviço. Ficavam por ali, a rodear a mesa, como quem não quer nada, a olhar o relógio, a dar indiretas, tipo “hoje, só amanhã” ou “seis da manhã é cedo, pra nós hoje”.
VI.
Nessas situações, o melhor fazer era juntar o pessoal e improvisar outras duplas numa espécie de mutirão ‘salva pátria’. Foi o que fiz num dessas sextas encrencadas. Chamei o simpático chefe da foto-mecânica, o amigo Quércia, para darmos o exemplo.
Foi só começar a leitura para constatar um Quércia espertíssimo.
— Ops, está faltando ponto aqui. Oi, oi, oi, repetiu o ‘s’ ali. Epa, pulou um trecho…
Que beleza. Fiquei impressionado. Ele era do ramo. Logo outros se juntaram a nós. E a montanha de textos indo abaixo.
Meia hora depois, empolgado, Quércia decretou:
— Agora, eu leio, chefia…
Como dizer não?
— Fique à vontade.
Foi então que percebi porque o apelido dele era Quércia. Era o próprio político ao ler um discurso para o plenário vazio. Monocórdio, arrastado, com tom solene a mastigar as letras e saborear as palavras e o momento. O assunto também não ajudava. Falava de umas alterações na pele dos rinocerontes das Ilhas de Jacarta – falei que apareceriam!!!
“Quem escolheu esse tema?”, eu me perguntava sonolento. “Acho que faltou matéria, lá na Baixada”, e a voz do Quércia longe, longe, cada vez mais longe… “Isso aqui é material de agência”. “Meu Deu, que sono!!!”
Só acordei com a comemoração do Quércia.
— Ufa! Terminamos, chefia. Bom texto, bem digitado. Quase não houve erros…
Respirei aliviado. Ninguém percebeu o cochilo. Logo levantei e fui lavar o rosto, tomar um café (arghh), frio, amargo e fraco, adequado àquela hora da noite.
VII.
Na segunda pela manhã, mal entro no jornal, recebo o aviso.
— O pessoal de Santos ligou uma pancada de vezes. Querem falar com você.
Repassei o que aconteceu na sexta. Nenhum grande ‘pepino’. Não sobraram anúncios de fora – que é, na verdade, o que interessa aos donos de jornal. Uma mudancinha na primeira, mas nada de transcendental. Fechamos na hora aprazada, por volta das três e meia. Desencanei, não era nada.
Foi quando o Quércia entrou na Redação, com um exemplar do Jornal da Orla na mão. Sem dizer uma palavra, abriu na página de Ciências e pude ver três setas vermelhas, feitas com aqueles canetões apropriados a flagar erros e nos humilhar. Indicavam que houve três saltos enormes. Parágrafos inteiros foram engolidos pelo nada do meu sono, o que de resto tornou aquela matéria chata numa chatice inteligível.
— Eles estão furiosos, chefia. Perguntaram quem revisou comigo.
— E você disse que fui eu. Acho que me distrai, enfim…
— Disse. Mas, eles não acreditaram.
— Como assim?
— Disseram que foi o João do Pulo, o rei do salto triplo.
VIII.
Pois é. Desde então, durante todo o tempo que trabalhei no Jornal da Orla, os pacotes de originais que eram endereçados a mim, todas as sextas, chegavam com o seguinte encaminhamento:
Da redação.
Para Rodolfo ‘João do Pulo’ Martino, o rei do salto triplo.
Sempre e sempre escrito com aquele canetão vermelho, apropriado a nos humilhar.
[Texto publicado no livro “Meus Caros Amigos – Crônicas sobre jornalistas, boêmios e paixões”]