Meninos, eu vi…
Juro que vi…
E o que vi vou lhes contar…
Foi há muitas e muitas eleições atrás. Nos idos de 90, provavelmente. Lá estava eu, intrépido repórter, a cobrir um desses ensaios de escola de samba em que tudo pode acontecer, inclusive nada acontecer. Era a tal noite que a Diretoria escolhe o melhor samba, o melhor enredo, a melhor mulata…
Nessas ocasiões, a escola arranja um convidado especial. Que, aliás, é comum arcar com todo custo da festa, inclusive o da contratação do show de sambistas, como Leci Brandão.
E aqui cabe um parenteses.
Houve uma época em que o pessoal das escolas de samba adorava levar a Leci Brandão para fazer o “esquenta” da noitada. O motivo era simples. Ela era comentarista dos desfiles para a TV Globo. Quando a escola passava, era inevitável o recado da moça saudando a comunidade: “Um abraço para o cumpadre Fulano, para a comadre Sicrana e para Sinhá Bletrana, chefe da ala das baianas dos Acadêmicos de Cangaíba”.
Um delírio. Quem era citado pela comadre Leci virava celebridade nacional, ao vivo e em cores.
II.
Voltemos à trama, pois…
Era início de novembro, às vésperas de mais uma eleição, realizada sempre no dia 15, feriado da Proclamação da República. Fazia um frio de incomodar esquimó. Mesmo assim, não demorou e quem chegou? Ora o convidado especial: o Sr. Candidato a Deputado Estadual a bordo de um Opala preto e de uma camisa maneira, toda florida, dessas típicas dos freqüentadores dos bailes do Hawaí. Uma breve avaliação e não erraria quem dissesse que tanto o Opala como a “estampada” já haviam virado os 100 mil quilômetros rodados.
Chegaram ele e seu brancaleônico staff de cumpinchas a distribuir “santinhos” e calendários. Quanta alegria! Que noite, prometia ser aquela…
Pouco mais de 22 horas. A quadra lotada de gente. Todos animadíssimos.
O baticum comia solto. De 15 em 15 minutos, entre uma leva e outra de sambas absurdamente iguais, o locutor (vou chama-lo de Sr. Apresentador porque é meu conhecido e não quero encrenca) anunciava ali a presença da ilustre futura autoridade e prometia: “Daqui a alguns instantes, o Sr. Candidato vai anunciar os projetos que bancará para levar nossa gloriosa escola ao Grupo Especial do carnaval paulistano”.
Em campanha eleitoral, o exagero é praxe…
III.
O homem era só sorrisos. Mas, aos poucos, foi murchando. O tempo passava e passava – e nada de ele falar.
Eram duas da manhã, e nada. A situação permanecia inalterada. Samba, suor, cerveja e, de 15 em 15 minutos, o locutor dava o recado: “Em poucos instantes, o Sr. Candidato a deputado patati e patata…”
Duas e trinta, duas e quarenta e cinco, três da matina…
O pessoal da Escola já estava pra lá de trêbado. O desafortunado sorria e ainda ameaçava uns passinhos trôpegos. Mas, os olhos caídos denunciavam um sono daqueles a lhe rondar o corpo e a alma. O locutor firmava o pacto: “Em poucos instantes, o Sr. Candidato… “.
IV.
Percebi que havia um certo descompasso. Ele estava ali há horas e horas. E nada. Pior foi o que, na falta de outro interlocutor de confiança, o homem me confidenciou: o Sr. Apresentador era amigo do Sr. Candidato. Inclusive jogavam futebol juntos e tal e cousa e lousa.
— Pó, será que esse (…) esqueceu que estou aqui?
(Repito este é um site família, não ouviremos/leremos palavrões. Prezamos a verdade, mas temos nossas regras.)
— Por que o Sr. Candidato não sobe ao palco e acaba com essa espera. Fale rápido e pronto. É só um lance de escadas — disse de enxerido que sou.
Foi o que o homem fez…
V.
Num ato de coragem e ousadia, o Sr. Candidato foi ‘peitar’ o Sr. Apresentador em nome inclusive da velha amizade e das tabelas ágeis que faziam no campo de soçaite do Clube Atlético Ypiranga, defendendo as cores do não menos nobre Sucatão.
(Ops, estou igual carteiro bêbado, entregando tudo errado.)
Corri para ver a cena. E foi inesquecível…
O Sr. Apresentador estava atrás do palco, visivelmente ‘passado’. Aliás, o que não faltava, alí, nos bastidores, eram garrafas, devidamente esvaziadas…
— Oh, meu. Se é para falar, deixa eu falar logo. Todo mundo já me viu. Cumprimentei a todos. Só falta saberem que o candidato sou eu. Me passa o microfone e vamos para o palco.
Quando o Sr. Apresentador viu o Sr. Candidato arregalou um olhar de surpresa. Sacudiu a cabeça, como se encarasse uma assombração. Logo, fincou um largo sorriso de quem revê um velho e querido praça.
— Ô amigão, que beleza, você aqui, cara! Quer desfilar, quer?
Um balde de água gelada numa noite fria. Todas as fichas caíram em todos os ‘orelhões’ da cidade. O Sr. Candidato desistiu de falar — e dos votos que soube, no mesmo instante, daquele fuzuê não viriam.
Olhou pra mim e teve um rasgo de sinceridade.
— Meu caro repórter, o Sr. Apresentador é meu amigo de longa data e gritou centenas de vezes o meu nome. Agora, se ele que é ele não estava prestando atenção no que dizia, imagine o resto do pessoal que nunca soube (nem saberá) da minha existência.
Fiquei com pena do Sr. Candidato. Quase pego um ‘santinho’ daqueles que os amigos distribuíam. Assim a noite não seria de todo perdida. Não deu tempo. Escafederam-se rápidos. Mesmo assim, conclui sobre a histórica cena:
– O cara não vai se eleger. Não é do ramo. Nunca vi político algum, eleito ou não, ter rasgos de sinceridade?