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Pelos caminhos de pedra e água

Direto de São José do Barreiro,
ao pé da Serra da Bocaina.
Vale do Paraiba. São Paulo. Brasil.

A História está sempre em construção, garantem os historiadores. São tão importantes os documentos que comprovam esse ou aquele fato como a memória preservada de geração em geração pelo relato dos caminheiros e viajantes. Diante dessa constatação, os caminhos de pedra e água da Serra da Bocaina (o Mambucaba se insinua por toda a segunda parte da trilha) são igualmente ricos em histórias e estórias. Quem chega à clareira que antecede ao estuário do rio vem sempre com uma boa novidade para contar aos mais incrédulos. Há quem se divirta em aumentar um ponto ao contar um conto. Mas, há aqueles que se impressionam com os mistérios seculares que ocultam as ladeiras da Trilha do Ouro que corta os estados de Minas, São Paulo e Rio de Janeiro.

I.

Conta-se que há muitos e muitos anos, mais de cem, uma numerosa caravana de caçadores, vinda dos centros de Minas, embrenhou-se mata adentro atrás de suas presas. Uns foram para os Sertões da Memória nos altos da Serra do Mar. Outros ficaram nas cabeceiras da Serra da Bocaina, atrás das pegadas de uma enorme onça predadora e de bote implacável.

A noite chegou e o grupo reuniu-se ao redor da fogueira para jantar, contar prosas e proezas e engendrar as caçadas do dia seguinte. Um negro escravo, um tanto idoso, camarada e companheiro, guarda e vigia do acampamento, queixou-se do frio que passara na noite anterior.

“Deus me acuda…Eu voumembora se esse frio continuar. Ah! eu voumembora…”

O chefe do caçadores apiedou-se do vigia e pediu que lhe dessem um couro de boi para protegê-lo. Era época de muito frio. Junho já andava em meio. O escravo enrolou-se como pôde, recostou-se ao chão – e não deixou sequer a cabeça ao relento.

Lá pelas tantas, quando todos dormiam pesadamente e o fogo já se apagara, entrou no rancho a destemida e, como era de seu feitio, num salto só arrebatou o escravo com couro e tudo. Saiu do acampamento do mesmo jeito que entrou, sem que cachorros e caçadores se dessem conta do ocorrido. A destemida até estranhou a carne dura – mais osso do que carne – daquela rês que dormia deitada e havia lhe servido de refeição; precária, sim, mas sempre refeição.

Antes do dia amanhecer, porém, todos despertaram com gritos pungentes que vinham lá dos confins da mata.

“Deus me acuda… Que euvoumembora…Ah! euvoumembora…”

Logo notaram a ausência do amigo e vigia – e se deram conta da tragédia. Ainda sonolentos e desorientados, deram início a arrumação de partida, atrelaram os cães e deixaram o malsinado lugar, partindo de volta para Minas. Nunca mais voltaram…

Em noites escuras e chuvosas, dizem os viajantes, ainda hoje se pode ouvir o lamento…

“Ah! euvoumembora. Deus me acuda…Que euvoumembora….”

II.

Foram os taubateanos que descobriram ouro nas Minas Gerais. Isso os “bocaneiros” provam e dão fé. Era da cidade de Taubaté, no Vale do Paraíba, que partiam as bandeiras a desbravar o sertão mineiro. Foi o cozinheiro de uma dessas expedições que, ao lavar as panelas na beira de um rio, encontrou uma pedra preta, mais resistente que a malacaxeta, tão comum naqueles beirais. Raspou com a unha e viu o cintilar do ouro. Daí em diante foi uma danação…A Serra ficou apinhada de gente que danou-se para a mineração. Até o pároco de Pindamonhangaba largou a batina e caiu no mundo atrás do vil metal.

Verdade verdadeira. O nome do padre era João Faria. Ninguém sabe se enricou ou deu com os burros n’água. O túmulo dele é lá em Cunha. E o local onde o cozinheiro descobriu o primeiro veio de ouro recebeu o nome que o vilarejo que virou cidade ostenta ainda hoje.

Chama-se Ouro Preto…

III.

O marechal Hermes da Fonseca, quando presidente da República, também andou pelos campos da Bocaina para passar uma curta temporada de descanso e lazer. Fora convidado pelo coronel João Ayrosa para caçar veados e hospedar-se na invernada do Lajeado.
O presidente lá chegou com grande comitiva e, nos dias que ali ficou, teve a acompanhá-lo um sertanejo de nome Cesário que lhe serviu de guia pelas veredas da serra.

Cesário era um caboclo falante, de muitas histórias de caçadas, algumas invencionices e outros tantos abusos. Tanto que logo passou a chamar o presidente pelo apelido de Macete.
De alma pura, o caboclo chorou quando foi se despedir do presidente. Também comovido, e algo sem graça, o Marechal convidou Cesário para visitá-lo, um dia, no Palácio do Catete e, de quebra, prometeu-lhe uma espingarda nova.

Eis que um dia, meses depois, uma algazarra na portaria do Catete chama a atenção do presidente que interrompe os despachos para saber o que está acontecendo. Um de seus estafetas lhe informa que há um caboclo maluco, prestes a ser preso, porque insiste em falar com um tal de Macete.

O presidente logo soube quem viera lhe visitar.

Abraçou Cesário como se fossem velhos amigos e, na impossibilidade de lhe fazer companhia pelas obrigações do cargo, providenciou carro e chofer, com a incumbência de lhe mostrar os encantos da Cidade Maravilhosa. Depois, o motorista tinha ordem de levar Cesário à Estação para que pudesse retornar à Bocaina.

No final do expediente, outra esparrela na portaria.

O presidente fica injuriado – e vai pessoalmente ver o que é desta feita. Lá encontra, no meio da guarda, o amigo Cesário que, ao vê-lo, apressa-se em tranqüilizá-lo.

— Macete, cansei da balbúrdia da cidade. Gosto mesmo é do meu sertão. Só voltei para buscar minha espingarda nova. Afinal, não podia ir embora e fazer essa desfeita pro amigo.

Cesário voltou de espingarda nova para a Bocaina. E os dois nunca mais se viram. Dizem que para sorte do Macete, ou melhor do presidente…

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