XIII.
— O ‘figura’, amanhã quero você às sete em frente ao portão de embarque do aeroporto.
— Legal. Nunca andei de avião.
— Não faz graça, meu chapa, você vai trabalhar comigo. Às sete. Ok?
— Não vai dar. Meu primo só passa às oito.
— As regras mudaram. Às sete e fim de papo.
Não respondi. Nem valeria a pena responder àquele metro e meio de pretensão, apelidado de Bigode. Cabelo aparado à ‘escovinha’ em uma época que só militar usava o corte, bigode vasto e felpudo caindo sobre o lábio superior, cara quadrada – era o próprio, arremedo de feitor e sargentão, de prancheta na mão e calça de tergal verde-abacate.
A volta no Fusca do Alberto foi silenciosa. Afinal, ele era cúmplice na troca de ajudantes e se manteve afastado do diálogo que travei com o Bigode, o que se achava.
Na despedida, não houve ‘até amanhã’. Um ‘obrigado e tchau’ ficou de bom tamanho.
Nem lembro se o Alberto respondeu.
XIV.
Na manhã seguinte, acordei antes de a mãe chamar. Me vesti com a melhor roupa e me despedi da mãe, sem tomar o café da manhã.
— Aonde vai. Você não vai esperar o Alberto?
Foi a vez da mãe ficar sem resposta. Antes das sete estava dentro do ônibus. Mas só cheguei às oito e pedradrinha no Itaim Bibi. Fui direto ao escritório de engenharia. Apresentei-me ao departamento pessoal e pedi minhas contas. Dez dias de trabalho, deveria receber em torno de 250 reais (transformando em moeda de hoje). Na verdade, recebi um pouquinho a mais. Quase trezentos paus.
Fui direto para o centro de São Paulo. Fiquei zanzando por ali, com a grana espalhada em todos os bolsos. Caso algum punguista me ‘aliviasse’, ficaria apenas com um décimo do dinheiro. Era só o que podia acontecer na São Paulo dos anos 60: você dar o azar de cruzar com um mão leve, um batedor de carteira num coletivo ou num local de aglomeração. Um encontrão e zapt. Você nem percebia que o cara havia furtado sua carteira…
Enfim…
Fiquei zanzando pela avenida Ipiranga. Olhei vitrines vagarosamente. Ameacei comprar uma camisa na alfaiataria Picadilly – mas, contive o impulso, além do era parecida com a que o Beto Rockfeller usava na novela. Antes das onze já estava no boteco que fez aquele ‘picadinho’ inesquecível para, agora sim, um almoço como ‘manda o figurino’. Às 13h15 fui o primeiro a comprar ingresso para a primeira sessão do cine Windsor. Não lembro o nome do filme, mas a atriz devia ser bem bonita – um dos critérios que sempre adotei para ver bons filmes.
XV.
Cheguei em casa – e claro – a Dona Yolanda estava, digamos assim, em choque.
— O que você aprontou. Não me diga que…
Fui obrigado a dizer.
— Fui demitido por vontade própria.
— Como assim?
Era uma longa história. Ela não entenderia alguns pontos de honra. Somos o que somos – e ponto. Não poderia deixar aquele estropício me transformar numa caricatura de mim mesmo. Era ele ou eu. O projeto da avenida Bandeirantes era muito pequeno para nós dois. Uma pena, mas…
Troquei-me rápido e fui direto para a quadra de cimento do Bandeirantes, da Vila Carioca. A turma ia fazer um rachão daqueles e eu precisava recuperar minha forma. Afinal, o Zé Luiz teria que ir ao casamento do irmão no sábado — e não poderia jogar. Ele entrou no meu lugar e não comprometeu. Eu não podia perder essa chance de recuperar minha condição de quarto zagueiro titular do valoroso time do Brasília, aquele que nunca venceu.
Nota do Autor –
Alguém aí tem alguma dúvida que o trecho mais certinho da Bandeirantes é justamente a reta que corta as imediações da avenida Miruna, onde tem o viaduto e o aeroporto. Pois é. Não levem a mal não, mas foi ali que atuou o degas aqui. Não sei, não. Mas acho que os rapazes se perderam depois que os deixei. Sempre desconfiei que o tal do Bigode era uma farsa. E o Alberto não ficava muito atrás, não. Que me perdoe o tio Júlio, tio da minha mãe que eu nunca conheci…