Da série
ESQUECER É PRECISO, MAS NÃO É FÁCIL …
… o dia em que o amigo Astrogildo me convenceu a ir com ele para o Rio de Janeiro. Adivinhem quem seria o nosso anfitrião na Cidade Maravilhosa? Ninguém menos que o ator Marcos Paulo, primo de segundo ou terceiro ou quarto grau do Astro. Ficaríamos, inclusive, hospedados no apartamento do próprio na Lagoa.
Janeiro de mil novecentos e setenta e quebradinhos.
Nunca havia ido ao Rio e, imaginei, seria mamão com açucar. Teríamos casa e comida, portanto só precisaria de uns trocos para “rosetar” pelas praias cariocas e ajudar na gasolina para abastecer o possante Fusca 62, verde claro, do Astrão. Um protótipo a enfrentar as curvas da Dutra.
Marcamos para a semana do feriado, provavelmente 25 de janeiro, aniversário de São Paulo. Iríamos na quarta, voltaríamos no domingo. Não vi qualquer inconveniente. Mas, deveria…
Marcos Paulo estava em alta como jovem galã da novela Pigmaleão 70. Namorava a Márcia Mendes, uma apresentadora de telejornal, loura e linda. E o Astro…
Bem o Astro era o Astro… Sempre uma surpresa – o que não significa dizer que era necessariamente boa. Eu era um garotão ‘cabeludo’ e branquelo, raramente ia a praia, como poderia desconfiar?
A idéia me encantou. Não tive tempo sequer de desconfiar. Outros amigos, como o Osvaldo ‘Bodão’, o Zé Roberto e o Formigão, preferiram desconversar. Duvidavam do tal parentesco. Reforçavam a desconfiança ao lembrar as dezenas de apelidos do amigo Astro. Caroço, Leão Marinho, Chicle, Cabeção, entre outros. Ou seja, o cara não era exatamente um galã e em nada lembrava o primo galã.
Mas, o amigo defendia-se heroicamente.
— A mãe adotiva dele é prima da irmã da tia da minha mãe. Ou vice-versa.
E reforçava:
— Ela convidou a gente para visitá-la, pergunta para o meu pai, pergunta, pergunta…
Não perguntei ao seo Nivaldo, pai do Astro. Deveria. Quando a esmola é muita, o santo desconfia. Principalmente quando soube, pelos jornais da época, que Marcos Paulo havia fraturado o fêmur ao cair de uma possante moto. Viajaríamos por aqueles dias. Por isso, os amigos comentaram o assunto. Gorou a viagem, pensamos. O Astro, porém, mostrou-se indiferente.
— Isso não é nada, gente.
Alguém perguntou para o Astro se ele sabia o que era fêmur. E que o ator deveria estar na cama, imobilizado, a inspirar uma série de cuidados extras de todos.
O Astro nem deu bola. E, confesso, eu também.
De qualquer forma, adiamos a viagem. Para quinta de manhã. Ou seja, tudo como dantes…
Chegamos ao Rio depois de sete horas de viagem. Inesquecível a performance do Astro como motorista, vale registrar. Ele insistia em manter o Fusca 62 na pista esquerda da via Dutra, o que impedia a ultrapassagem de outros carros. Inclusive – e principalmente – os mais possantes, como um Dodge Dart turbinado e de ronco furioso
— Passa por cima, bonitão – esbravejava o amigo ao mesmo tempo em que esmurrava o ar com o braço esquerdo para fora da janela aberta a 90 por hora, o que para o Fusca era um escândalo.
Mesmo assim, saímos ilesos da Dutra.
Na cidade, rodamos outro tanto até chegar à Lagoa e ao prédio. Subimos com nossa bagagem. Dia de sol absoluto. Calor como nunca havia sentido. Óbvio que não havia interfone, essas modernidades. Por isso, tive uma péssima sensação quando chegamos à porta do apartamento. Parece que acordei do torpor e caí dentro de um pesadelo.
Com a sutileza de um paquiderme dentro de uma loja de louças, o Astro tocou duas ou três vezes a campainha. Ainda esperamos intermináveis minutos até que nos atendessem. Apareceu uma senhora, com a bolsa e as chaves nas mãos. Ficou claro que estava de saída. Terminava de se aprontar, por isso a demora em abrir a porta.
Quando viu o Astro, não se conteve:
— Hugo, eu não pedi para você me avisar antes, bem antes, quando viesse?
Antes de dizer que me senti o pior dos mortais, vou apertar o ‘pause’ e registrar que o nome completo do amigo era Astrogildo Hugo Tadeu Simões. Astro, para os amigos da rua. Hugo, para familiares e afins (caso explícito do galã global e os seus). Zé, para o seu pai que assim lhe chamava, mesmo depois de lhe imputar quatro nomes. E José Carlos, quando era apresentado a uma roda de garotas na praia.
Isto posto, voltemos à cena. Play.
Fiquei paralisado e imaginariamente ouvi a sonora gargalhada da turma quando soubesse da bela recepção. O Astro insistia em lhe chamar de tia.
E a suposta tia só sabia repetir o refrão:
— Hugo, eu não pedi para você me avisar antes, bem antes, quando viesse?
Olhei para a lixeira, para a escadaria. Mas, não descartei o elevador. Que tal uma saída estratégica. A primeira seria mais rápida. Deslizaria seis andares abaixo. Uma pena que a mala não cabia ali. Pensei na escada… Quando ouvi a ordem da senhora quase tia do Astro.
— E você, menino, larga a porta do elevador!
Soltei de imediato e congelei. Só voltei à realidade quando ela passou a chave para o Astro e recomendou:
— Seja o que Deus quiser. Vou ficar com meu filho no hospital que já estou atrasada…
Consegui entrar no apartamento de móveis rústicos – à época, dizia-se que feitos pelo próprio ator – depois que a senhora desapareceu elevador abaixo. Mesmo assim, me movimentei com cuidado e sentei na beira da cadeira. Uma inquietação derretia a minha alma e consciência. Não pude contê-la e a transformei numa pergunta-resposta quase lamento.
— Quando a gente vai embora, Astro? Amanhã, bem cedinho, né? Odeio calor.
PARTE II
A resposta do amigo Astrogildo Hugo Tadeu Simões à minha desolada pergunta foi a esperada:
— Que é isso? Já que estamos aqui, vamos aproveitar.
E partiu direto para cozinha conferir o que havia de bom na geladeira.
— Astrão, manera. Mal chegamos…
— Só quero ver se tem água gelada. Está muito calor.
Minutos depois, o Astro voltou para sala. Mastigando algum alimento.
Preferi contemporizar. Fiz que não vi. Na verdade, foi essa a filosofia que adotei para os próximos e imprevisíveis três dias. Mesmo naquela tarde ensolarada, enquanto ajeitava minhas coisas, atormentava-me a voz do amigo Formigão, um dos tantos a dizer não ao convite do Astro para “conhecer o Rio de Janeiro”. Antes da viagem, ele me alertara:
— É fria, bicho. Salta fora.
Não o ouvi. Não saltei. E agora estava na fria mais acalorada da minha vida. Sem alternativa. Só me restava contar os dias, as horas, os minutos para a volta a Sampa.
E ainda havia o desafio da via Dutra.
O apartamento não era grande. Mas, super transado. Fazia sentido aquela história de que o próprio Marcos Paulo havia confeccionado os móveis. Um tom despojado e rústico caracterizava a decoração. Eu morava num apartamento básico no Ipiranga, 80 metros quadrados de área útil para desfrutarmos; o pai, a mãe e eu. Claro, achei aquele lugar o máximo.
Talvez por isso fiz outra proposta ao Astro.
— Sua tia está preocupada com o filho no hospital. Vamos ficar aqui no apartamento só o tempo necessário. Dar o menor trabalho possível para ela.
— Você nem precisava dizer. É isso mesmo.
— Depois a gente precisa agradecer a hospedagem e visitar seu primo no hospital.
— Primo? Que primo…
— O Marcos Paulo, Astro. Você não falou que ele é seu primo sei lá de que grau?
— Claro, claro. Vamos, sim.
Preciso dizer que não fomos ver o ator no hospital?
Mas, pareceu-me que a senhora também não fazia muita questão. A bem da verdade, foi gentilíssima com a gente e, cá para nós, conhecia o Astro bem mais do que alguém pudesse supor; diria, de outros carnavais.
Não vejo o Astro há tanto tempo, e que ele não nos leia. Mas não era fácil. Carudo que só…
Todos os dias ela aprontava o café da manhã para gente – e se mandava (provavelmente rezando) para o hospital. Nós saíamos cedo. Voltávamos para um banho rápido no fim da tarde e rua. Quando retornávamos, ela já estava dormindo. E assim foi.
Fizemos naqueles três dias o roteiro clássico dos turistas. Conhecemos as praias. Do Leme ao Leblon. Copacabana. Ipanema. Um dia fomos à Barra. Corcovado. Cristo Redentor. Bondinho (o Astro dava um sorriso sinistro toda vez que aquele treco balançava). Cinelândia. Centro do Rio. Lapa. Nada de grande relevância. Salvo duas ou três observações.
A primeira doeu nas pernas e nos pés. Para economizar a grana da gasolina, usávamos – decisão do Astro – o carro o mínimo possível. O negócio era mesmo no pé-dois. Raramente caminhei tanto em minha vida.
Como conseqüência vem o segundo destaque. Bastaram algumas poucas horas de praia para que eu ganhasse um tom de pele vermelho-melancia, de fazer inveja à recém-promovida espécie de hortaliça. Não sei quem me falou ou onde li uma dessas pesquisas importantíssimas para a história da humanidade. A melancia deixou de ser fruta para, depois de anos de estudos científicos, ser aceita no mundo encantado das hortaliças.
Enfim, devo ter ficado uma graça e absolutamente destoante da cor dos praieiros cariocas. A impressão que tinha era de que todos admiravam a passagem deste ser vivo (?) e quase em pele viva que ora lhes escreve. Olhavam mesmo. Especialmente quando deixava escapar um comentário qualquer.
— Ôrra meu, o Rio é lindôôôô!!!
Falava baixinho. Mas, todos pareciam ouvir e balançar a cabeça com certo desdém.
Vamos ser sinceros. O Astro também estava bem arranjado de amigo.
Resumo da ópera. Dos três dias que tínhamos planejado ir à praia, só pisei na areia no primeiro, a sexta. Nos outros dois, impossível. Bastava eu sentir o sol no ombro para que a ardência me levasse a procurar a proteção da primeira sombra. Ir a praia de camisa, nem pensar. Quer dizer, nem pensar para mim. Porque o Astro foi. Nessas horas, pacientemente o aguardava sob a marquise de algum prédio, em algum boteco, ponto de ônibus coberto ou qualquer outro fiapo de sombra – vestido da cabeça aos pés.
Entre um “meerrrrmão” (que ainda hoje imagino traduzir do carioquês como ‘meu irmão’) para cá e outro “meuquiurido” (‘meu querido’, óbvio) pra lá, os minutos, as horas e os dias se passaram.
Óbvio que nenhuma “garota de Ipanema” ou do Leblon ou do Leme ou de Madureira se dignou a olhar o Melancia aqui. Óbvio também que as festas com os artistas globais não passaram de folguedos imaginosos do Astrão. Óbvio que no domingo pela manhã quando nos despedimos, a senhora foi gentil e educada. Mas, óbvio também que se mostrava mais feliz do que o costumeiro, mesmo com o filho ainda no hospital.
Ainda lembro a despedida. O Astro todo educado:
— Melhoras ao Marcos Paulo, tia. Dê a ele minhas condolências.
— Recomendações, Astro. Recomendações — corrigi o mais rápido que pude.
Acho que foi o sol que tomamos na cabeça.
— Dê a ele minhas recomendações, tia – consertou ele.
Mas, a tia não se comoveu, foi firme na resposta.
— Da próxima vez, Astro, lembre-se: avise ANTES que vem. Avise ANTES. Vão com Deus! Boa viagem!
E lá fomos nós enfrentar a via Dutra num Fusca 62.
Não sei o porquê, mas hoje ao narrar essa história e acompanhando as andanças do papa Bento XVI pelo Vale do Paraíba, me veio uma súbita recordação.
Por diversas vezes, em diversos trechos alternados da rodovia — em Pinda, Roseira, Guaratinguetá, Aparecida, Taubaté e até em Caçapava — vi o mesmo policial rodoviário fazer sinal, com as duas mãos, para o Astro maneirar na velocidade. E imediatamente o meu amigo – que não era de maneirar – maneirava, silenciosamente.
Olhe que Deus me perdoe se for heresia. Pode ser o sol na cabeça que, desde então, venho tomando vida afora. Mas, preciso e vou dizer: o policial errante era muito parecido com o Santo Frei Galvão, o primeiro santo nascido no Brasil e canonizado ontem pelo papa.
Vocês não acreditam?
Melhoraria algo se lhes lembrasse o "vão-com-Deus" da senhora? E se eu lhes dissesse que passei rezando as seis horas e meia da viagem? Está bem, concordo, seria exagero dizer que foi milagre.
Mas, o que vocês acham? Sinceramente…