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Devolteios

Hoje visitei a igreja de São Joaquim e Santa Ana.

A igreja fica no alto da antiga Chácara da Glória ao lado da capela de Nossa Senhora de Lourdes. Igreja e capela formam a Paróquia Nossa Senhora da Glória, no bairro do Cambuci. Ali de cima, vislumbrei o pátio do colégio marista Nossa Senhora da Glória, a rua Lavapés (onde meus avós moravam), o que sobrou do jardim na rua de baixo (onde morou Volpi) e parte da região central de São Paulo. No caminho de ida, passei pelo Largo do Cambuci. Quando voltei, fiz questão de esticar o trajeto para rever a Várzea do Glicério.

E daí cara pálida? – diz o leitor diante do relato.

Daí, nada…

Aliás, se preferir, pode parar de ler por aqui.

Agora, convenhamos, numa manhã de domingo esquisito, de um tempo esquisito, num país cada vez mais esquisito, numa cidade maluca… Depois de um sábado estranho, mais essa neura de blogar diariamente, além das traulitadas que me reserva a semana que entra…

Convenhamos, depois de tudo isso – e não achando graça em nada, absolutamente nada –, resolvi dar uns devolteios nos rincões da minha infância. Na verdade, não foi nada planejado. Se assim fosse, seriam paradas obrigatórias a rua Muniz de Souza (onde morei no número 420) e o Jardim da Aclimação, com seu lago, árvores e campo de futebol.

A troco de nada, só por ir mesmo, fui indo, indo e acabei fondo, como dizem pela aí.

II.

A igreja é a que meus pais, Aldo e Yolanda, se casaram em 1942. Também onde fiz a primeira comunhão e me crismei no tempo do Padre João, bravo que só ele. A ponto de controlar quem entrava e quem saía da igreja, mesmo em meio à missa. Saibam, meus caríssimos, naquele tempo o celebrante rezava em latim e ficava de costas para os fiéis. Mesmo assim, não foram poucas as vezes que interrompia os dóminuns e os oremuns por uma causa maior.

— Onde o Zezinho pensa que vai? Volte já para para o seu lugar. Ou o sr. José vai saber que belo filho tem.

Ai, de quem não obedecia. Acreditávamos que seríamos excomungados. O pior era quando o próprio Padre João largava a cerimônia ao meio para catar pela orelha o fujão e levá-lo volta ao seu santificado lugar na igreja.

Santa Vergonha que nos protegia da sua ira…

III.

Foi na capela que tive aulas de catecismo. Onde a minha turma do Grupo Escolar Oscar Thompson se preparou para a primeira comunhão. Tínhamos sete, oito, nove anos e não lembro de grandes pecadores entre nós. As lições também tirávamos de letra. O mais difícil mesmo era enfrentar o Padre João, frente a frente e de joelhos no confessionário. Quaisquer "respondi para minha mãe" ou "chutei minha irmã" resultavam em dezenas e dezenas de ave-marias. Para não falar dos pais-nossos e glórias aos pais.

Em muitas ocasiões, as maninhas escaparam ilesas pela "divina" proteção que as altas cotas de penitências, sacramentadas pelo Padre João, nos impunham…

IV.

Para quem passa pela Lavapés ou pela Justo Azambuja – e mesmo lá de cima -, o Colégio Nossa Senhora da Glória (onde fiz admissão e ginásio) continua o mesmo. A mesma fachada, os mesmos corredores. Só que um olhar mais atento do alto da colina entrega o que mudou. Roubaram-lhe a alma. Cadê o campo de terra batida, de tantas porfias gloriosas e onde consagrávamos vida e sonho?

Devia prever, óbvio. A tal modernidade.

Confesso: senti uma fincada no peito quando vi que desapareceu. Em seu lugar, assim à distância, me pareceu que construiram um ginásio poliesportivo e algumas quadras de society. Ou seja, hoje eles incentivam a prática de esportes menores.

Tolos, querem forjar campeões olímpicos? Medalhistas dessas bobagens como o Pan do Brasil? Que pecado, este sim merecia grave penitência.

Em que cancha jogam hoje os clássicos Glória vs. Arqui ou Glória vs. Carmo ou Glória vs. Colégio Santista? Clássico dos clássicos das camisas azuis — todos os times tinham a cor azul de Maria, a do Glória era com listas verticais em azul e branco. O segundo uniforme era igual ao de um certo Boca Juniors, um time desconhecido da Argentina. Inteira azul, com uma lista amarela na horizontal.

Ficávamos semanas sem dormir antes desses jogos. A revanche era sempre em campo adversário, sob apupos da torcida contrária.

Muito provavelmente não existem mais.

Juventude marista, não sabe o que perdeu…

V.

Quanto à Várzea do Glicério, fui mesmo só para matar a saudades. Os campos de futebol desapareceram há tempos e também há tempos o espaço abriga o complexo do INSS, além de alguns gigantescos templos evangélicos. Tudo insinua decadência e miséria.

Mesmo assim, esfreguei os olhos para afastar um cisco desses que deixam aquela ardência na vista, sabe qual? Pois, me foi impossível não lembrar do Huracan, time com o uniforme futebolístico mais lindo que vi na vida: camisa grená, calções pretos e meias cinzas.

O emblema era um balão voador, só com a letra H.

Meu cunhado, Valtinho, era lateral esquerdo do primeiro quadro e atendia pelo singelo apelido de Solado, dada às gentilezas com que dividia a bola com os adversários. Por algum tempo também honrei aquele manto sagrado, mas sem fazer história.

VI

Outra tristeza está o Largo do Cambuci. As lojas perderam o glamour e – imaginem – nem o Peg-Pag existe mais. Era ali diante de uma das primeiras lojas da primeira rede de supermercados do Brasil que se realizavam os autos de Natal e os comícios políticos. Nessas noites, os bondes perdiam o horário, coisa que raramente acontecia, ilhados no meio da enorme multidão de adhemaristas ou de janistas.

As duas turbas juntas, nunca. Era pau na certa!

Mas, isso foi no mais antigo dos anos…

VII.

Terminei na Cantina 1020, ali na Barão de Jaguara.

Lembro de, criança ainda, ficar correndo por entre as mesas enquanto o pai e os amigos traçavam uma suculenta perna de cabrito com bróquolis. Me encantavam os quadros na parede dos times do Palestra, do Torino (a equipe toda morreu num acidente aéreo), da Azurra e dos mapas de regiões da Itália.

Hoje, em meio ao almoço e à cantoria, me desiludi de vez. Não pelo nhoque com brachola. Impecável. Mas, foi bater os olhos na parede à procura de tais lembranças e as reencontro, só que ladeadas por um poster do Santos, campeão de 2004. Que heresia!

Viro a cabeça para a outro lado e aí, sim, tudo se desvanece. Tem outra novidade: um quadro do Corinthians, campeão de qualquer coisa!!!

É. Nem o Padre João daria jeito em tanta modernidade.

[Texto publicado no livro “Volteios – Crônicas, lembranças e devaneios"]

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