Da série “o leitor tem sempre razão”.
Respondo a Analy C., amiga e jornalista que não vejo há milênios. Ela me envia um texto publicado na revista Nova de maio e quer saber o que eu escreveria sobre o tema: a lei da atração.
É de autoria de um dos gurus da auto-ajuda, Roberto Shinyashiki, e propõe que somos responsáveis por tudo de bom ou ruim que atraímos em nossas vidas. Conta uma série de casos comuns aos nossos ouvidos – de pessoas que não emplacam uma certa, seja na vida afetiva, seja na profissional – e dá uma lista de ações que, se respeitada, nos leva à rota da felicidade.
A matéria é longa. Os procedimentos, um tanto robóticos, tipo: “Faça uma lista de desejos” ou “Coloque energia nas suas realizações”. Mais: “Observe suas crenças negativas” e “Avance apesar dos fantasmas”. E finalmente: “Celebre Sempre!"
Confesso que deste último eu gostei.
Assim como gosto sempre de lembrar a cena de um filme de Woody Allen. Ele interpreta um roteirista de TV que tem os originais dos textos que escreve, sistematicamente, alterados pela produção, pelo diretor do programa e até pelo dono da emissora. Um belo dia, ele explode. Não concorda com um reparo medíocre que fizeram e sai, corredores afora, desancando a tudo e a todos.
Palavrões pra cá, palavrões pra lá, acontece o óbvio:
“RUAAAAA!!!”
Nosso herói diz que era isso mesmo que iria fazer e continua o périplo de xingamentos. Já na rua, do lado de fora da emissora, olha abestalhado a imponência do prédio onde trabalhava e conclui:
— Só vinte segundos de felicidade e, agora mamãe, estou desempregado.
II.
De volta ao artigo.
Li mas não me aprofundei na análise, não. Reconheço, porém, que uma certa disciplina só deve nos fazer bem. Ter uma ‘pegada’ otimista pode abrir portas. Saber organizar-se para enfrentar os desafios diários é postura corretíssima. Ser o que hoje esses senhores chamam de “pró-ativo”, uma dádiva.
Convenhamos, porém. Será que dá para segurar essa barra 24 horas por dia, todos os dias? E as voltas das voltas que o mundo dá? A saber. De repente, não mais que de repente, abre a porta e surge a moça de sorriso largo e olhar que cativa, o que faço? É o acaso. Quer deixar um envelope para alguém que não está e me encontra. Proponho um café para prolongar a permanência dela por ali ou saco do bolso a listinha, leio atentamente e concluo:
— Nem vem que hoje não é o dia de você chegar.
Outro exemplo. Agora é você, Analy.
Sei lá, imagine-se na Redação a colocar “todas as energias positivas” em suas tarefas e surge um daqueles “pepinaços” comuns ao dia-a-dia dos jornalistas. Rebata logo, Analy, rebata:
— Chô, fantasma. Some, desaparece. Não pautei você.
É provável que vai se repetir a história dos “vinte segundos de felicidade”.
III.
Me parece um pouco tábua de salvação. Ou aquele preceito, fanático e miticamente religioso: se for bonzinho, ganharás o reino dos céus. E aqui aproveito para contar outra filosofada de Woody Allen, que aliás está bem retratada nos filmes “Match Point” e “Melinda, Melinda” — assistam!
Para Woody, sorte existe e é fundamental na vida das pessoas – é o tema do drama “Match Point”. Nós, humanos, preferimos não acreditar nisso para que não fiquemos à mercê sabe-se lá do quê. Então, recorremos a algumas regras que, se não forem quebradas ou, no mínimo, não forem quebradas publicamente, nos trarão uma vida tranqüila e razoavelmente feliz.
De outro modo, e aqui entra o intrigante “Melinda, Melinda”, os instrumentos que compõem o painel de nossas vidas são basicamente os mesmos. Há quem os manipule para formatar um dramalhão mexicano e há quem os domine em tom de doce enredo de uma “trailler romântico”, com final feliz e trilha sonora de Carl Porter e Sinatra.
IV.
Vou lhe dar outro exemplo cinematográfico.
Vem do filme “As Pontes de Madison”. A dona de casa tem uma vida vulgar a cuidar do marido, um fazendeiro remediado, e de um casal de filhos aborrecentes. Os três precisam viajar por uma semana e ela (Meryl Streep) fica sozinha para cuidar do dia-a-dia do sítio. Eis senão quando aparece um fotógrafo charmoso e silencioso (Clint Eastwood) a clicar a região para a National Geografic.
Perceba: o cara não é fraco, não. Tem estilo e pegada. E foi bater com os costados na casa da pacata senhora a fim de informações básicas. Onde era tal lugar, como se chega lá, em que horas a luz incide sobre a ponte famosa e cousa e lousa e maripousa.
Óbvio que aconteceu o acontecido.
Com a convivência, ficam amigos. Muito amigos. Rola um clima legal entre os dois, tanto que a gente, na platéia, fica na maior torcida.
Só que a família volta num dia de chuva torrencial. E a senhorinha não sabe o que faz. O fotógrafo já terminou seu trabalho e só espera a decisão.
A cena é qualquer coisa. Antológica.
Chove que chove. Ela está na cabine do caminhãozinho furreba do marido – marido que, diga-se, nada sabe. Iam para a cidade, me parece. Numa encruzilhada, encontram com a camioneta do fotógrafo, também parada. Chove que chove, eu disse. Há aquele momento de hesitação entre os motoristas. Quem passa primeiro. Vinte segundos, talvez. A mão da moçoila se aproxima da maçaneta para abrir a porta e saltar rumo ao carro do ‘lindo lindão’. Todos respiram fundo no cinema. Torcem para que ela diga sim à vida. Afugente os fantasmas, coloque energia positiva no gesto e…
E nada acontece.
De volta ao sítio, a senhora encontra uma das câmeras do homem. Que guarda com carinho.
V.
Desculpe-me caso algum leitor não tenha assistido ao filme. Estraguei o grande momento. Mas, foi necessário. Vou explicar o porquê. Recentemente, encontrei uma amiga que – lá pelas tantas – fez o caminho inverso da heroína do filme. Fiquei feliz com o reencontro. Quis saber da sua vida e lhe perguntei sobre o novo amor, também com alguém da turma dos retratistas. Citei o filme, por acaso.
A resposta foi sintomática.
— Ah!, meu caro, nem lhe conto. Devia ter ficado só com a máquina e mandado o fotógrafo andar.
São os tais vinte segundos, minha cara.
Eles decidem tudo. Ou quase tudo…