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Recordações de um repórter

Queria que o título desta provável série, que hoje inicio, fosse “Recordações do escrivão (que não é o) Isaías de Caminha”. Queria…

Se fosse, seria uma clara reverência ao romance de Lima Barreto, lançado 1909. Não é, mas continua sendo. Explico: acho oportuno lembrar a trama do livro, pois mostra o dia-a-dia de um jornalista e da redação de um jornal carioca (seria o precursor do Jornal do Brasil), ainda na virada do século 19 para o 20. Dizem que, por causa desta obra, ainda hoje o nome de Lima Barreto não pode ser citado nas páginas do JB. A direção não deixa. Custo a crer, mas não duvido. Nada mudou.

Além de longa para título de post, a denominação seria pretensiosa, imprecisa e desproporcional ao que aqui pretendo: registrar rapidamente observações da minha trajetória de repórter ‘vira-lata’. Não vou nem levar em conta o quanto de desproporcional que há entre este combalido escriba e o grande escritor brasileiro. Para alguns especialistas, Barreto tem a mesma dimensão de Machado de Assis, que é o maioral.

Fiquemos, então, com Recordações de um repórter.

Óbvio, mas eficiente.

I.

Vocês podem não acreditar. Às vezes, nem eu acredito. Mas, a primeira vez que escrevi a palavra “desquitada” num texto a ser publicado houve um burburinho na Redação. Seria adeqüado ou não usar o termo para mostrar o estado civil de uma senhora. A matéria era sobre o Dia da Mulher e peguei depoimentos de algumas delas que trabalhavam fora de casa. Ano que isso aconteceu: 1974. Vale só para ver o quanto mudou o mundo.

II.

Escrevi num texto: mussarela de búfala.

Quando fui olhar a matéria na página, haviam corrigido: mussarela de búfalo. Que absurdo.

O texto viraria piada a partir dessa simples alteração. Quis saber quem foi o autor da proeza. Chamaram o secretário gráfico que me passou para a revisão (ainda havia revisão no jornal). Fui direto e reto à mesa dos revisores. Cheguei bufando, queria a cabeça do trapalhão. Todos se esquivaram. Sobrou apenas uma senhora empedernida que assumiu a responsabilidade e teimou que estava correta a mudança.

Vivam a cena!

Eu tentava convencê-la que búfalo não dá leite, portanto… Mas, ela recorria ao dicionário para explicar a correta grafia da palavra “búfalo”, com acento e coisa e tal.

— É búfala, minha senhora. BÚFALA, LA, LA. Entendeu?

Demoraram uns bons minutos até a ficha cair. Desconfio que a senhora pediu as contas no dia seguinte. De tantas piadinhas que ouviu. As redações tinham um implacável senso de humor.

III.

Fui entrevistar a atriz e cantora Zezé Motta. Anos 80. Auge do sucesso da moça que acabara protagonizar o filme Xica da Silva. A Warner estava lançando um novo disco e apostava as fichas no talento de Zezé. Havia toda uma temporada de shows prevista. Sobravam expectativas. Era a musa do momento.

Cheguei na gravadora da rua Alves Guimarães, em Pinheiros, no horário previsto. Fomos para a sala de imprensa e, mal começo a entrevistá-la, aparece outro repórter. De uma revista, digamos, de celebridades. Diz que perdeu o horário reservado a ele e se eu me importo de que participe da nossa conversa.

Concordei. Fique à vontade, disse.

Foi o que ele fez. Danou-se a fazer perguntas do tipo “cor favorita”, “comida que mais gosta”, “música predileta” e por aí foi. Fiquei só olhando e me divertindo com as respostas.

A um dado momento, o rapaz sacou esta:

— Em uma só palavra: o que é felicidade para você?

E a atriz/cantora respondeu sem hesitar.

— Marcos. Marcos Paulo.

Eles eram namorados à época. E a moça estava apaixonada pelo global.

Aplaudi a resposta. Franca, corajosa. E, diante da perplexidade do outro jornalista, pude finalmente voltar a perguntar…

IV.

Desculpe Waltão, mas tenho que contar.

Esta aconteceu no tempo em que os desfiles de carnaval eram na avenida Tiradentes. Lá estávamos eu e o repórter-fotográfico Walter da Silva para cobrir o tal do Grupo Especial das Escolas de Samba paulistanas. Chegamos lá pelas 19h30 e o desfile comeu solto até nove, dez da manhã do dia seguinte. Foi uma maratona – e ainda hoje é assim.

Óbvio que, em meio ao baticum, repórter e fotógrafo se perdem. Um corre para pegar um depoimento aqui. Outro quer fazer a foto da cabrocha ali. Há um certo desencontro que, de resto, não atrapalha o trabalho de ninguém.

Salvo quando o fotógrafo decide tirar uma soneca na viatura nos intervalos de uma escola e outra. Eu não recomendaria. Mas, foi o que o Waltão fez – e guardou segredo.

Passou a provável campeã, Vai-Vai. E o moço achou que era hora de dar uma relaxada no carro. Ferrou no sono. Só voltou depois que outra das escolas havia desfilado. Como já disse, ele não contou pra ninguém. Pra ninguém mesmo.

Só descobrimos, dias depois, quando anunciaram a vencedora do carnaval daquele ano: Rosas de Ouro. Justamente a escola que veio atrás da Vai-Vai. Ainda hoje dou risada do Waltão tentando explicar o inexplicável.

— Veja bem…

E não víamos nada. Cadê a foto?

E ele:

— Veja bem…

Sorte que fantasias e adereços das escolas todas sempre se parecem. Era ainda mais assim naquele tempo em que os jornais só traziam fotos em branco e preto.

Veja bem, caro leitor. Não me entenda mal. Ninguém desconfiou. Houve até passista da Rosas que jurava ser ela aquela moça de biquininho ali, lá no fundo da foto da primeira página.

Tinha certeza que não era. Mas, não ia cortar o barato da moça. Mais bonita ao vivo do que na foto que, a bem da verdade, nunca existiu.

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