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Espada de luz

Paris, 2003. 2 de janeiro.

Fiquei devendo ao leitor (se é que haverá algum?) um diário de viagem. Fiz pior. Prometi falar das belezas e magias de Mont Saint Michel e desapareci deste bloco de anotações por três dias.

Já estamos em Paris e o que mais temos feito é caminhar e caminhar, além de visitar museus e igrejas. Por isso talvez me sinto à vontade para usar um recurso dos católicos, o méa-culpa, méa-culpa, méa-culpa para assumir a minha indisciplina na viagem e na vida. Assim mudarei o foco. Óbvio que não deixarei de escrever. Mas, a partir de agora, trarei para vocês algumas anotações sem a preocupação cronológica e/ou mesmo um texto escorreito.

Isto posto, passamos às breves observações.

I.

Viajar é a melhor coisa do mundo. Chegar em Paris é o melhor da viagem. Por mim, gostaria de ficar por aqui alguns dias a mais. Me deixar envolver pelo dia-a-dia da cidade que é linda. Mas o roteiro inclui Londres, Amsterdã, Bruxelas e o que pintar. Então, farei o melhor: aproveitar o tempo que nos resta na Cidade Luz.

II.

Antes algumas breves linhas sobre Saint Michel. Trata-se de uma pequena ilha rochosa na chamada Baixa Normandia. Fica no estuário do rio Couesnon que desemboca no Canal da Mancha. É um lugar repleto de lendas e histórias do mar: monstros marinho que viravam embarcações, marés traiçoeiras, guerras entre esquadras rivais, salteadores e piratas até que, reza a tradição, a aparição do anjo São Miguel Arcanjo pôs ordem no lugar – e fez-se a paz, na medida do possível, entre os homens de boa vontade.

Por essas e outras que não sei contar, construiu-se ali uma fortaleza e no alto desta uma igreja em louvor ao anjo redentor. É o ponto turístico mais visitado da Normandia e está entre os primeiros de todo o território francês. Desde 1979 é considerado Patrimônio Histórico da Humanidade.

Faz um bocado de frio no inverno.

Chegamos lá loucos para ver a ilhota ficar sem contato com o continente. Antes de partir, lemos e ouvimos sobre o fenômeno que acontece sempre que sobe a maré. O mar a invadir lentamente a planície arenosa. Ver desaparecer o elo umbilical que nos une à França. Depois acompanhar a fúria das ondas, cada vez maiores, na arrebentação junto aos rochedos. Não nos faltou imaginação – seria como entrar no túnel do tempo.

Aliás, foi essa a primeira e única decepção. Assim que pegamos as chaves dos nossos aposentos, indagamos o recepcionista do hotel pela segurança dos veículos nos estacionamentos, fora da fortaleza, junto ao mar.

— Não há perigo.

— Como assim?

— Fiquem tranqüilos.

— Mas, e se a maré subir nesta noite e inundar o local?

Um sorriso, depois a resposta:

— Isto não acontece desde o século 19…

Olhamos sem graça uns para os outros, mas resolvemos relevar. Até para a segurança dos veículos é melhor assim.

III.

Esqueci de dizer…

Uma das atrações maiores da cidade é estátua de São Miguel no topo da igreja. Está a 170 metros de altura. Aliás, há referências por todas as partes ao anjo. Tanto que, além da imagem em que ele enfrenta um monstro marinho de espada em punho, o que mais se vê à venda nas lojinhas locais são as ditas-cujas, espadas. De todos os tamanhos, modelos, origens e cortes.

Eu mesmo fiquei propenso a comprar uma. Custava 43 euros – e era das mais em conta. Algo em torno de 200 reais, o que pagaria um dia de estadia nos hotéis.

Desisti. Não sei exatamente o que faria com a tal. Serviria de adorno na sala de casa? Uma lembrança deste lugar que nos inspirou a viagem.

Todo o cavaleiro tem uma espada. Foi o que li numa das histórias da primeira coleção de livros que o pai me comprou. Era garoto ainda – e aquelas histórias – elas, sim – inundaram minha imaginação e personalidade.

IV.

Há alguns anos, quando visitei as ruínas do Castelo dos Templários, em Tomar, Portugal, fiquei me ‘achando’ um dos personagens daquelas fábulas antigas, repletas de ensinamentos e justiça. Lembro que caminhei ao redor das muralhas – como fiz aqui em Saint Michel – como se fosse amo e senhor de todas as sacrossantas lutas que livrariam o mundo de todos os males.

De quebra, me achei investido de certos dons e outras tantas boas certezas. Entre as quais, o privilégio estar ali…

V.

Faz sentido.

Para quem saiu do Cambuci, filho de um modesto (mas, simpático e cativante) operário, até que estou me saindo bem, vida afora…

A partir de então, todos os dias busco um momento meu, pessoal e intransferível. Pode ser em uma igreja – que é o que mais visito em viagens assim – ou mesmo num lugar silencioso qualquer. Agradeço as graças recebidas e tento me preparar para os desafios que virão e têm vindos e não são poucos e ótimo que venham.

Ao final, fecho os olhos e lembro a figura do pai a sorrir. Caladão, como era de seu feitio. De joelhos, então, diante do Altíssimo, imagino uma espada de luz a iluminar aquele instante e o resto do dia.

Vejo o pai sempre com um blazer branco de lã. Era sua marca registrada de elegância quando eu ainda era menino. O menino que fui e ainda insiste em acreditar no que vê e, principalmente, no que está por vir…

* Na foto, a Kangoo a caminho de Mont Saint Michel.

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