Acontecem coisas engraçadas nessas viagens longas que se faz de ônibus. É inevitável. Chega uma hora que rola ladeira abaixo a pose com que todos se apresentam. E aí é um salve-se quem puder. Está todo mundo a meter o bedelho em tudo quanto é conversa…
Mesmo os mais reservados acabam por ouvir histórias e mais histórias sobre a vida dos seus vizinhos de banco – e o ônibus se torna uma versão ambulante da Grande Família.
Olha aí. Lá vem um rapaz com jeito de Agostinho.
— Vai um pão de queijo aí, compadre? Acho que comprei demais. Se não der um fim nisso hoje, vai estragar. E a patroinha vai pegar no meu pé. Aceita?
Simpático e prático o moço de calças pelas canelas e sandálias. Até hoje não entendi a malandragem dessa moda – enfim, já passei da idade de entender as coisas que nunca vou entender…
Vou aceitar mesmo assim.
II.
— Ai, o Dija, mãe, não ia gostar. Imagina. Ele detesta caminhar. Até quando vai ao shopping, ele fica sentado na praça de alimentação enquanto vou às compras.
É a moça do banco atrás do meu. Uma jovem senhora que viaja com a mãe e com a filha de onze anos. Dija, presumo, é o maridão que, por motivos óbvios e/ou profissionais, não quis ou não pôde viajar. No entanto, ao cabo de algumas horas de viagem, sei mais sobre ele do que sobre qualquer inconfidente mineiro – inclusive, Tiradentes.
Querem ver?
É resmungão, não gosta de arroz e feijão, prefere churrasco. Trabalha muito. Não tem tempo para mais nada. Até as cuecas, ela é quem compra. Sempre se queixa de dores nas costas. Gosta de ver futebol pela TV, é torcedor fanático da seleção.Tem adoração pela filha e liga de meia em meia hora. Bastava ressoar o toque de um celular para o ônibus inteiro fazer a ilustre saudação: "É o Dija".
E era…
III.
Sentem que lá vem história…
A senhora ao meu lado conta para o casal no banco da frente. Encantou-se com Ouro Preto, que cidade!
— Gostei mais de Tiradentes. Parece mais ajeitadinha, diz a interlocutora.
Em vão…
A senhora retruca. Em seus 50 anos de vida nunca tivera uma sensação assim. É kardecista e, depois de conhecer as igrejas e se postar diante do monumento a Tiradentes, lhe veio a sincera sensação que vivera ali em outra encarnação.
— Não tem explicação. Parece que já conhecia todos os lugares. Em meus 50 anos…
E se punha a suspirar sobre o que fora na época do Brasil Colônia, ali pelas cercanias da histórica Vila Rica, primeiro nome de Ouro Preto.
— Acho que fui uma escrava. Senti uma carga de sofrimento muito pesada. Vocês podem imaginar as dores de ser arrebanhado em outro continente como animal, a viagem nos porões de um navio negreiro e se tornar escrava. A vida era um padecer sem fim…
Fez-se um breve silêncio. De repente a senhora, de tez clara, achou por bem reformular a história. Talvez estivesse entre os inconfidentes.
— Por que não? – ela própria se perguntou e tratou de responder.
— Em meus 50 anos de vida sempre fui uma mulher de luta. Não admitiria viver sob o tacão de invasores a roubar nosso ouro. Sou professora de História, sabiam? Quer dizer, hoje trabalho no ramo do comércio. Mas, quando veio a Redentora, em 64, fui presa na escola onde trabalhava. Me levaram para ‘tocar pianinho’ nos porões da ditadura. Sempre fui uma libertária, uma guerreira. Liberdade ainda que tardia…
IV.
Desisti de ouvir o discurso da mulher. Tinha coisa errada. Mentia descaradamente. Até acredito que viveu em Ouro Preto em outras eras. Não sei se foi escrava, inconfidente, a própria Marília sem Dirceu ou guia de turismo. Mas, calculem comigo, se foi presa em 64 quando era professora de História, ela tinha no mínimo 17 ou 18 anos; portanto, nasceu em 46 ou 47, donde se conclui que hoje tem 60 ou 61 anos…
Taí…
Achou que me enganaria com essa história de: “Em meus 50 anos…”
Eu, hein!
V.
Devia ter previsto. Foi morder o pão de queijo que o rapaz me ofereceu e sair em busca de um pronto-socorro dentário em Belo Horizonte.
Eu, hein!