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O coiso

Demorou um pouco a entender o que se passava na pequena cidade. Ausentou-se por anos a fio para cumprir o trajeto natural daqueles que sonham ser alguma coisa na vida. Estudou, trabalhou, enfrentou as durezas da metrópole, os desafios de viver em outro País – e agora retornava.

Era como se nunca tivesse partido.

A praça, a igrejinha com ares coloniais, os jardins, os bancos que eram de cimentos voltaram a ser de madeira, como nos tempos do avô que o criou.

O coreto. Ah! o coreto…

Será que ainda existe aquela a banda municipal, de uniforme de cetim lustroso, branco e vermelho e as habituais desafinações dos metais. Não soube dizer porque aquele som lhe era tão íntimo, tão seu.

Maluquice, talvez.

A corporação era famosa em toda a região. Fora fundada por um maestro chamado Laudismar, que desapareceu um certo dia sem deixar rastros.

Nunca entendeu a história. As pessoas silenciavam toda vez que ele, curioso, se aproximava a fim de saber que fim levou o maestro.. Parece que não era assunto de criança.

Havia inclusive um retrato do maestro na sala do prefeito.

— Acho que o homem foi importante mesmo.

II.

Esfregou as mãos no rosto para avivar outras recordações.

Lembrou o quanto era importante tocar na banda. Os garotos concorriam entre si. Os mais talentosos ficavam com os instrumentos de sopro, os mais leves. Os animados, com a percussão. Todos fugiam da tuba. Até que apareceu um grandalhão desengonçado chamado Agenor. Resultado: ganhou um lugar na última fila e o apelido de Tubão.

Pois é…

Ouviu dizer assim que chegou que Tubão, agora, era o prefeito reeleito.

Talvez fosse oportuno marcar uma conversa com o amigo de infância. Andavam juntos, mas não eram propriamente amigos, amigos. Jogavam futebol, nadavam no ribeirão, pescavam na represa. Mas, sempre em bando. Nunca houve uma maior proximidade entre os dois. Parece que o amigo tinha receio de se achegar, como se soubesse de algo que não pudesse dizer. Um segredo.

Mas, que bobagem, coisa da criança impressionada que sempre foi. Também crescera sem pai. Mas, soube dar a volta por cima.

De onde ele tirou essa lembrança?

Nada a ver.

III.

Agora ele próprio era um cara bem resolvido. Executivo de uma multinacional, família constituída e coisa e tal. Poderia de alguma forma ajudar no que fosse preciso. Há 30 anos quando partiu, era natural que uma cidade interiorana fosse pacata, silenciosa. Mas, agora em pleno século XXI, o cenário que tinha diante dos olhos era o de uma cidade-fantasma, dessas de filme de faroeste.

Será que alguém anunciou que o bando de Billy The Kid vem aí?

IV.

Riu, do próprio pensamento. Mas, concluiu: falta iniciativa, mesmo. Alguém como ele com uma visão corporativa, de larga experiência até internacional. Não era fraco, não. Ano passado, participou de um congresso, como aluno assistente, em Barcelona. Divertiu-se a valer. Bebeu todas. Mas, caramba, recebeu certificado de presença que mandou enquadrar e pôs no escritório.

Aposto que bastava citar essa larga vivência em plagas espanholas, olé, e o prefeito Tubão o chamaria de excelência. Aliás, a modéstia não permitiu que concluísse o pensamento, mas ele mesmo achava que o título lhe cairia muito bem.

“A esse meu jeito humilde de ser”, confabulou para si mesmo.

Não deveria ser assim.

— Lutei tanto para chegar onde cheguei.

V.

Certamente, Tubão já tinha a informação de que ele, filho ilustre, voltara à terra natal. Poderia esperar que mais cedo ou mais tarde haveria o inevitável encontro. Cidade pequena é assim. Todos sabem de tudo. Se Tubão fosse alguém de vivência internacional como ele, não perderia essa chance. Chamá-lo-ia (adorava mesóclises, mas só as usava em pensamento, como medo de delatar a idade) para uma conversa.

E ele teria muito o que dizer. Muito o que ensinar àquele matuto.

Seria melhor aguardar.

VI.

Pensou melhor e decidiu encarar o desafio de frente.

Foi direto para a Prefeitura, um velho casarão assobradado, de muitos cômodos e pouco conforto. Ouvia o assoalho ranger a cada passo. Fez-se anunciar pela secretária, uma moça de cabelos encaracolados, provável neta de algum conhecido que fez pouco caso do cartão de visita que ele lhe pôs sob os olhos.

— Seu Genor Tubão, tem um coiso aqui querendo falar com o senhor.

VII.

O coiso era ele. Não gostou. Mas, foi em frente.

— Bem-vindo, amigo, o que lhe traz de volta à nossa modesta cidade.

Explicou sem explicar, rapidamente. Queria mesmo ir direto e reto ao assunto.

— Precisamos reinventar nossa cidade. Está tudo parado no tempo e no espaço. Não sei como vocês sobrevivem.

— Do jeito que dá, amigo. Sem pressa, nem leseira. Mas, com a certeza de que um dia vem depois do outro.

VIII.

Resolveu não desistir.

— Precisamos traçar metas, planejar investimentos públicos, gerenciar crises, pensar numa grife para divulgar o nome da cidade no estado, no país, no mundo. Marketing. Você sabe o que é marketing?

— Olha, amigo, saber como o senhor imagina que as pessoas precisam saber eu não sei não. Tenho uma vaga ideia. É assim como faz a galinha que faz cocoricó depois de botar o ovo. Não é não?

— Que exemplo?

— Pois é. O tal de ‘marquetingue’ é o cocoricó. Mas, a gente aqui está mais é preocupado com o ovo mesmo.

IX.

Balançou a cabeça e partiu para a ofensiva.

— Mas, veja, saí daqui há 30 anos, a cidade era exatamente igual. Tinha pouco mais de 2 mil habitantes. Quantas pessoas moram hoje aqui?

— Dois mil, dois mil e cem. Não passa disso.

— Está vendo? Parou no tempo e no espaço.

— Não é bem assim, não. É da natureza caboclada.

X.

Que conversa. Entendeu que o matuto Tubão estava sem resposta. Insistiu.

— Precisamos apostar no desenvolvimento.

— É da natureza da caboclada, já disse…

— Que natureza, Tubão?Que natureza?

— Agenor Tubão, por favor, que agora sou prefeito.

XI.

Meio sem jeito, Tubão, ou melhor Agenor Tubão, continuou.

— Ora, doutor, o senhor sabe muito bem…

— Não sei não. Diga.

— Melhor deixar pra lá.

— Está sem resposta. Diga.

— Então, tá. Vou dizer. São esses danados desses caboclos. Para cada mulher que engravida, é um marmanjo que bota o pé na estrada e some. Igualzim a seu pai.

XII.

Tubão fez cara de quem disse o que não deveria dizer. O visitante perdeu a pose e as referências.

"Que história? Do que ele está falando?", pensou.

Só voltou a si quando passou em frente ao velho retrato do maestro Laudismar.

Olhou fixamente para a fotografia esmaecida pelo tempo e não se controlou:

— Papai, papai!

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