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Manhã de sábado 2

Conto como foi. Mas, não garanto…

Ele entrou naquele bar na esquina das ruas Grenfeeld com Bom Pastor. Cumprimentou os conhecidos com um aceno vago, levantou o polegar no sinal de positivo para o balconista. De pronto, dois copos surgiram à sua frente. Um para a cerveja; outro, menor, para a branquinha, o quebra-gelo.

Virou numa golada só a segunda. No instante seguinte, enfrentou o primeiro copo de cerveja com a mesma voracidade. Deu um suspiro e percebeu que as mãos pararam de tremer, os olhos clarearam.

Sentiu-se vivo, mas vazio, vazio.

Ninguém foi falar com ele.

Também não queria falar com ninguém.

Era manhã de sábado. Mas, poderia ser outro dia qualquer. Não faria diferença. Aliás, de um tempo pra cá, as coisas pareciam não fazer sentido. Não, para ele. Talvez outros pudessem sonhar, encontrar caminhos. Vislumbrar uma brecha.

Algo que valesse a pena.

Repetiu o ritual. Virou a cachaça, sorveu a cerveja. Mastigou o contraste dos sabores e o desconcerto de começar a embebedar-se àquela hora do dia. Pensou nos anos todos que dedicou ao banco. Imaginava-se importante. Riu dos contratempos, dos prazos, daquele dia-a-dia estressante. As gravatas. O relógio de ouro quando completou 30 anos de trabalho. A aposentadoria – e os trocados que lhe garantiam a vida medíocre, mas livres dos horários e dos ritos.

Teve a sincera impressão que desperdiçara o melhor da vida. Mas, nada poderia fazer. Nada.

A não ser, beber.

— Bebamos, pois… Saúde, gente!!!

Alguns sorriram cúmplices. Outros até levantaram seus copos. Muitos ficaram indiferentes. Ninguém se achegou – o que ele achou bom. Desta vez, ele próprio espantou-se com a rapidez com que fez o vira-vira.

Apoiou o cotovelo no balcão e a cabeça na palma da mão esquerda. Deixou-se estar por instantes. Não era essa a vida que um dia ele pensou levar. Será que só fez andar em círculos até chegar ali – círculos vagos, por nada e para nada.

Filhos crescidos – dois; respeitáveis cidadãos. Netos bonitos, ainda com a vida pela frente. Todos saudáveis. A mulher a cuidar da casa. Tudo certo. Aparentemente certo. Nos conformes, como dizia um amigo. Só aquele nó na garganta. Inexplicável nó a lhe roubar o ar, a lhe tirar o chão. De onde veio essa angústia. E para onde o levaria…

Ouviu o ronco conhecido do busão, o Fábrica/Pinheiros, que se aproximava da fatídica esquina. Ali, onde o Sacomã entorta o rabo e o coletivo faz a curva aos trancos e aos sustos.

É um salve-se quem puder. Passageiros são jogados para a esquerda – e aí de quem não se segurar. Quem está no meio da rua corre para escapar do mostrengo que bufa e se entorta todo. Até os que estão na calçada fazem figa para que tudo termine bem – e o bichão não se descontrole calçadas e prédios adentro.

Tudo volta à aparente normalidade no ponto de parada a 50 metros dali.

Foi exatamente para lá que o homem correu, sem sequer pagar a conta.

— Vige, o que deu nele? Saiu sem pagar…

Quem quis ver viu Orlando se esbaforir na tentativa de alcançar o ônibus.

— O que deu no homem? – perguntaram-se.

Uns disseram que era coisa de mulher.

— Desde que a amante o deixou, deu de beber.

Outros, que estava com doença ruim.

— Me disseram que está fazendo uns exames e… Sabe, né, como é a vida.

Houve quem concluísse sabiamente:

— É só um cachaceiro correndo do calote que deu.

Indiferente a tudo, Orlando viu o ônibus parar no ponto, como a lhe esperar. Não sabia exatamente o porquê fazia tudo aquilo. Para onde iria e mesmo se iria. Queria estar dentro coletivo e aí ganhar o mundo. A porta aberta era a certeza de que chegaria a tempo. Não sentia o cansaço da tresloucada corrida, nem o coração acelerar. Só tinha olhos para a porta. Assim que entrasse agradeceria a gentileza do motorista que o esperou…

Menos de cinco metros. Alguns passos e a liberdade lhe sorria. Teria coragem?

Saltou o meio fio e…

Só se escutou o estrondo do baque, depois a gritaria de quem viu a cena.

Uma exclamação calou fundo no pessoal do boteco:

— Meu Deus, a moto atropelou o véio…

Acordou na cama do hospital. Gesso por todo o corpo. Braço esquerdo estendido para a frente, perna esquerda suspensa por um fio, cabeça enfaixada. Estava imobilizado. Procurou com os olhos fazer o reconhecimento do local. Mas, só conseguiu mesmo ver o teto bege amarelecido pelo tempo.

Ouviu vozes conhecidas. A mulher, um dos filhos e talvez um médico estavam por ali. Ninguém chorava. Não havia desespero. Mas, sentiu o clima de expectativa.

— Nasceu de novo – disse o desconhecido.

— Dez dias de coma, doutor. Será que não vai ficar seqüela?

Era o filho mais velho com voz de preocupação. O soluço que imaginou ser da esposa se antecipou à resposta.

— Fiquem tranqüilo…

Agradeceu a Deus pelo diagnóstico. Não estava tão ruim assim. De imediato, refez a cena e não atinou com os fatos. Como não chegou ao ônibus? O que teria acontecido? Desistiu por hora, pois se lembrou do pior. A morena Bartira, a criança dormindo, o paraíso da Ilha do Marajó – era tudo ficção. Sonho de um ser inconsciente – e inconseqüente.

Parecia tão real.

— Vem pra rede mais eu. Vem…

Suspirou. Quis voltar o tempo, refazer a manhã de sábado. Conformou-se com a certeza do agora:

Estar vivo é o melhor da vida.

[Texto publicado no livro "Meus Caros Amigos – Crônicas sobre jornalistas, boêmios e paixões"]

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