Um grupo de estudantes de jornalismo vem desenvolvendo um livro-reportagem sobre o Bixiga, tradicional bairro paulistano em que passado, presente e futuro (assim, assim) se misturam a refletir a São Paulo de todos nós.
Trata-se de um TCC. Isto é: Trabalho de Conclusão de Curso. Sou o (des)orientador da turma – na verdade, três garotas e um rapaz.
Têm sido divertidas nossas reuniões. Ao menos para mim, especialmente pelas histórias que eles me trazem e contam. Desde o início, ficou claro que há coisas que podem acontecer em qualquer lugar desta desvairada paulicéia. Mas, está comprovado: no Bixiga, seguramente acontecem todas elas – e mais algumas.
Das andanças que os quatro fizeram por ali, saltam personagens surpreendentes. Mas, este é assunto para o livro dos meninos – e não para o post. Senão vão me cobrar prévios e legítimos direitos autorais.
II.
Hoje cedo chamou minha atenção – e motivou este comentário, que espero breve – um dos emails que recebi dos alunos, com a abertura de um capítulo. Adivinhem quais os versos que apareciam como epígrafe? A íntegra da letra de “Boemia”, de Adelino Moreira, magnificamente interpretada, em áureos tempos, por Nélson Gonçalves. Aliás, foi a obra-prima da dupla.
“Vai embora
Só me resta o consolo e a alegria…
De saber que depois da boemia
É de mim que você…
Gosta mais”
III.
Fiquemos por aqui na poesia e vamos ao tema do post de hoje…
Boêmios e boemia.
Será que ainda existem os tais, como nos velhos e idos tempos?
Talvez no Bixiga…
Ou nem lá…
IV.
Acho mesmo que nem os da minha geração exercitaram a boemia, como manda o figurino da eterna canção. Isso foi coisa para a rapaziada de priscos tempos. Anos 40, 50. 60, talvez.
O Brasil vivia o esplendor da Era do Rádio. A capital ainda era o Rio de Janeiro. Dali ressoavam brasis afora. Cassinos, ternos bem cortados. O cigarro no canto da boca. A gravata em desalinho. O último bonde. A decisiva influência do cinema americano. Todos eram um pouco Humphrey Bogart, em Casa Blanca.
Era comum ouvir-se o comentário:
— É um bom rapaz. Mas, adora uma farra.
Ou seja, um “mal partido” para as mocinhas de família, casadoiras.
Num post recente, lembrei deles a caminhar em sentido contrario à procissão da alta madrugada do domingo de Páscoa. Voltavam do baile do Sábado de Aleluia, onde rasgavam a fantasia e descontavam os pudores reservados à Quaresma.
O post é o Me Fale de Você (2), de 28 de setembro.
V.
Mas, voltemos à boemia…
Cabe explicar que em nada tem a ver com essa moda bisonha do happy hour ou mesmo com generalizações, tipo “sair de balada”.
Entenda-se.
Boemia era coisa para homens que varavam a madrugada em bares a procurar algo ou alguém. Uma felicidade etérea que sequer os próprios ousavam explicar. Havia uma áurea romântica. Bebiam, cantavam, compunham, faziam versos. Falavam de amores impossíveis. Encontravam as mulheres da noite que não eram exatamente boemias.
Não hora para acabar.
Apenas, não resistiam a luz do dia…
VI.
Desnecessário dizer que, tal a musa da canção acima, a mulher por quem eram apaixonados ficava em casa. Inimaginável ela sequer esbarrar naquela vida de perdição. Não, a mãe dos futuros filhos daqueles incautos senhores…
Aliás, quem beirasse os trinta já era tratado de senhor – e, curioso, gostava de receber o tratamento cerimonioso.
VII.
Havia, claro, aqueles que perdiam o controle. De repente, se viam perdidamente apaixonados pelas "mariposas" que freqüentavam os inferninhos (boates, bares e que tais). Mas, este era o tema preferido de outro compositor, igualmente fantástico: Lupiscínio Rodrigues…
Há versos definitivos sobre o assunto na pungente “Quem Há de Dizer”:
“Ela nasceu
Com o destino da Lua
Pra todos
Que andam na rua
Não vai viver
Só pra mim”.