Já havia escutado a história da voz do próprio Milton Nascimento, mineiro de Três Pontas. Depois de alguns anos, a ouvi de novo. Desta feita, quem me contou foi o paulista de Igarapava, Jair Rodrigues – e esta segunda versão que passo a vocês.
Foi lá nas quebradas de 1965. Jair ainda cantava na noite para defender uns trocados, mas já tinha um certo nome na praça, disco gravado, convites para shows, essas coisas de início de carreira. Certa manhã, o amigo Nino, que dividia com ele o palco da famosíssima boate Djalma, lhe telefonou para fazer um pedido. Coisa de irmão mesmo.
— Olha, Jair, tem um rapaz que divide a pensão comigo lá na Marques de Itu. Ele é bom pra caramba. Canta, compõe, veio de Minas e está à procura de uma chance. Tenho ajudado no que posso. Só que meu quarto já é pequeno. E não está dando para segurar o cara lá. Mas, ele tem músicas maravilhosas. Você não poderia ouvi-lo e hospedá-lo por uns tempos.
Jair sabia bem as dificuldades de vir do Interior para começar a vida numa cidade como São Paulo. Por isso, não titubeou. Sempre ouviu dizer que uma mão lava a outra. Com ele, também foi muito parecido. Era hora de retribuir.
— Traz a fera aqui.
Foi assim que ele conheceu o Bituca, um certo Milton Nascimento. Logo, no primeiro encontro, Milton mostrou todas as músicas, inclusive a tocante Morro Velho que depois, bem depois, Elis gravou. Por uns tempos, o novato morou com num quarto na casa do cantor. Moço de hábitos simples, era de uma timidez de assustar para quem sonhava ser artista de palco e TV.
Para Jair, a vida seguia uma trilha natural de sucesso. No rádio e começava aparecer também na TV.
— Quase não o via porque eu já tinha uma vida atribulada. Fazia shows, cantava na noite. Mas, sempre que o encontrava, ele estava com o violão e um caderno em que rabiscava as letras de suas canções.
Nessa época, Jair era muito amigo de outro grande cantor negro, Agostinho dos Santos. Toda quarta-feira eles se encontravam para jogar futebol. Jair era lateral-esquerdo. Agostinho, um bom zagueiro central. Diziam que repetia no campo o estilo elegante que o consagrou como um cantor pré-bossa nova.
Jair não lembra se numa dessas idas à sua casa para o futebol Agostinho conheceu Milton. É provável, mas não tem certeza. Certo mesmo é que Agostinho encantou-se com as músicas do Bituca. Tanto que por conta e risco as inscreveu no Festival Internacional da Canção, que a Globo realizou no Rio de Janeiro. O tímido Bituca jamais cometeria tal ousadia. Resultado: a belíssima “Travessia” ecoou soberana no Maracanãzinho. Versos concisos, melodia que a todos envolveu. Não venceu. Ficou em terceiro lugar, mas Milton foi escolhido como melhor intérprete. A partir daí, é a história que todos conhecemos.
Fala Jair:
— Quando era solteiro vivia mudando de casa. Não parávamos. Não tínhamos aquela coisa de guardar coisas. Íamos deixando tudo pelo caminho. Muda daqui, muda dali. Num desses vaivém, lembro que, certa dia, achei o caderno do Milton com os rascunhos da letra de Travessia. Que beleza. Também encontrei umas partituras do Ivan Lins que fez, lá em casa, o arranjo de não sei que música. Guardei por uns tempos. Mas, outras mudanças vieram e sei lá onde foi parar. Se eu os tivesse guardado, hein? Seria uma relíquia inestimável daqueles tempos. Mas, tudo bem, valeu a lembrança de conviver com esse pessoal, de um talento extraordinário.