por Elisa Marconi e Francisco Bicudo
Muito vem se falando sobre os 200 anos da chegada da família real portuguesa ao Brasil. De fato, a data é mais que relevante, um marco na nossa história, já que Dom João VI promoveu mudanças significativas na então colônia, que alteraram radicalmente o contexto político, econômico, social e cultural daquele tempo, que ajudaram a consolidar os ideais de independência e a dar contornos mais nítidos à perspectiva de uma identidade nacional.
Entre os tantos feitos de 1808, estão a abertura dos portos às nações amigas, a criação do Jardim Botânico do Rio de Janeiro e uma série de reformas urbanas e arquitetônicas que mudaram a paisagem carioca. Contudo, um dos fatos mais importantes e menos comentados é que, junto com a corte, aportou em solo nacional a imprensa brasileira. Um equipamento sofisticado para a época, capaz de imprimir muitas páginas, com tipos ingleses, veio na bagagem real e logo começou a ser usado por aqui, dando origem a uma nova fase no projeto de nação tupiniquim.
Segundo a historiadora Ana Luiza Martins, a nobreza portuguesa não tinha, a princípio, nenhuma intenção de fundar a mídia nacional, havia mesmo era uma necessidade burocrática de imprimir seus documentos e de fazer chegar a Portugal impressos e documentos oficiais. Mirou numa coisa, acertou em outra. Até porque a Coroa teve de correr atrás do prejuízo, já que em junho de 1808 Hipólito José da Costa lança, em Londres, o Correio Braziliense, jornal de oposição que fazia severas críticas ao projeto dominador português; como contraponto e espaço aberto ao jornalismo oficial, surge em setembro A Gazeta do Rio de Janeiro. A régia imprensa acabou por inaugurar a era da comunicação em nosso país.
Rodolfo Martino, coordenador do curso de jornalismo da Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), acredita que esse silêncio a respeito do bicentenário da imprensa brasileira não se deve a nenhum preconceito ou excesso de zelo para não cometer ultrajes ou auto-elogios. “É um hábito dos jornalistas do Brasil, é uma característica da nossa imprensa falar muito da vida dos outros e muito pouco ou quase nada da nossa própria vida”. O jornalista, segundo Martino, costuma manter essa conversa sobre a profissão, sobre seus procedimentos e seu papel dentro das redações ou nas rodas de conversas com os pares, mas encontra alguma dificuldade em tornar isso público. “Estamos sempre tão ligados numa realidade maior da cidade, do país ou do planeta que dificilmente falamos desse proceder diário”, explica.
Mas há ainda um outro motivo para que a imprensa não esteja se revisitando como deveria. Existe uma espécie de pacto entre os conglomerados da comunicação, segundo Martino, que justifica que um órgão não fale de outro, evitando provocar situações constrangedoras. “Seria muito esquisito ver o jornal Estado de S. Paulo enaltecendo a importância da Folha de S. Paulo no episódio das Diretas Já, em 1984, por exemplo; ou a Globo reconhecer o papel da editora Abril na queda do ex-presidente Collor”, defende o jornalista.
História da imprensa no Brasil
Com intuito de ajudar a superar ao menos em parte essa lacuna, as idéias relacionadas ao nascimento, ao desenvolvimento e ao papel dos jornais, revistas, emissoras de rádio e de TV e até mesmo dos sites e blogs estão no livro História da Imprensa no Brasil, recém-lançado pela Editora Contexto. Ana Luiza Martins é uma das organizadoras da obra, ao lado de Tânia Regina de Luca. As duas são doutoras em História pela Universidade de São Paulo e há muito tempo vêm utilizando o material que sai na imprensa como fontes de formação e informação.
Mas as autoras sentiam falta de uma obra ao mesmo tempo ampla e profunda sobre o tema. Como seria uma tarefa árdua as duas sozinhas darem conta dos 200 anos de história e de toda a diversidade de manifestações do jornalismo do país, optaram por convidar especialistas no assunto e encomendar artigos sobre momentos importantes da mídia na história do Brasil. O resultado “é um livro bastante abrangente e reflexivo, e que se vale de informações modernas e especializadas para cada momento histórico abordado”, de acordo com Ana Luiza.
Assim, cada capítulo retrata um tempo específico e as relações da imprensa com esse contexto. “Eu, por exemplo, escrevi sobre a imprensa do tempo do Império, que era uma imprensa política e que sofria censura. Mas a partir de 1821, pouco depois da abertura dos Portos, o cenário muda e começa a haver uma proliferação muito rica dos jornais”. Do marco inicial aos dias de hoje, História da Imprensa no Brasil distribui seus textos por três grandes fases: os tempos imperiais, a euforia da República e o panorama dos últimos 50 anos.
Os textos de Ana Luiza e Tânia fazem parte do primeiro bloco, mas elas destacam que na segunda fase encontram-se artigos preciosos, seja por sua atualidade ou seu ineditismo. É o caso de “Diversificação e segmentação dos impressos”, da também historiadora Ilka Stren Cohen, que revela como o século XIX foi variado em termos de publicações. “Os públicos desses jornais e revistas eram bem específicos. Havia publicações para mulheres, para literatos, para operários, enfim… todo mundo era contemplado”, adianta a autora. Outra pérola desse segmento é o texto “Imprensa, cultura e anarquismo”, do professor de Teoria Literária da Unicamp, Antônio Arnoni Prado. Trata-se de um desses artigos para virar referência quando o assunto é a imprensa anarquista brasileira.
Na última parte, aparecem os assuntos mais contemporâneos, do surgimento do rádio e da TV ao boom do mercado editorial de revistas segmentadas, passando pela imprensa alternativa que cresceu nos tempos da ditadura militar. Os dois últimos artigos – “Revolução tecnológica e reviravolta política”, da jornalista Luiza Villaméa, e “O meio é a mensagem, a globalização da mídia”, do jornalista e sociólogo Cláudio Camargo – refletem sobre duas questões obrigatórias hoje: a globalização da mídia e os novos meios de comunicação eletrônicos e digitais, as chamadas new media. Martino avalia que a blogosfera ainda é um fenômeno muito novo e que ainda é difícil dizer se de fato se trata de jornalismo propriamente dito ou não. Mas, segundo ele, não importa. “É um barato, é a oportunidade de juntarmos o desejo de informação instantânea e online do público e a profundidade, a análise e a crítica, desejadas por nós jornalistas”, conceitua.
Claro que falar do processo histórico e da construção passo a passo da imprensa do país é importante e significativo, ainda mais quando se comemora 200 anos de seu nascimento. Mas as autoras explicam que talvez a grande contribuição do livro seja apontar como a imprensa foi e é até hoje um fator importante de constituição da nação brasileira.
Para Ana Luiza, “o jornalismo esteve presente em todos os momentos importantes do país, seja como observador, seja como protagonista da nossa história” e esse papel está bem representado na obra. Martino, que também é professor de História do Jornalismo Brasileiro na UMESP, enxerga a imprensa da mesma maneira, como colaboradora ou incentivadora de etapas relevantes da história do Brasil.
De maneira transversal, o livro História da Imprensa no Brasil também discute as relações da imprensa com o poder. Na oposição ou dando suporte aos atores hegemônicos, os jornais, revistas, rádios e TVs sempre representaram um sustentáculo importante para as disputas de projetos políticos e de ideologias. Ana Luiza, que também trabalha na Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, lembra de dois momentos bem emblemáticos. “O primeiro é o suicídio de Getúlio Vargas. A imprensa basicamente não deixou alternativa para o presidente”. Ela continua: “o outro momento foi o impeachment do presidente Collor. Um dos artigos mostra como a atuação da Veja e da Isto É foram decisivas para o encaminhamento e o desenrolar da história”. Martino busca na memória a história do jornalista Hipólito José da Costa, que escrevia para o primeiro jornal de oposição do país, o Correio Braziliense. “O livro do Laurentino Gomes revela que o Hipólito era financiado por Dom João VI. Então até podia fazer oposição, mas bater de frente nunca”, brinca, defendendo que, portanto, está no DNA da nossa imprensa essa relação mais que intrincada com os agentes do poder.
Para o professor, de um modo geral, a imprensa está mais próxima que afastada dos projetos políticos em vigor, mas há casos na história do país em que o divórcio entre as duas partes fica evidente. Não só no exemplo já citado da postura da imprensa anti-getulista que levou ao suicídio de Vargas, mas segundo ele em um outro momento bem recente aconteceu uma cisão significativa. “Na última eleição presidencial, havia uma postura clara da imprensa a favor da realização do segundo turno, que aconteceu, mas que terminou num resultado diferente do que esperavam os grandes conglomerados jornalísticos. O Lula ganhou”, conta.
Seria esse um exemplo de que a imprensa estaria deixando de ser uma formadora de opinião com influência sobre a população brasileira? Martino acha que o jornal e o rádio já exerceram muito mais eficientemente esse papel de promotores e defensores de determinadas idéias, levando a população a tomar aquele ideário como dela. Depois do final dos anos 1970, com o domínio da televisão sobre os outros veículos, a realidade ficou um pouco diferente. “Até a metade da década de 70, era o jornal e o rádio quem propunham os assuntos. Depois disso passou a ser a TV e junto com essa mudança, outra se mostrou”.
Para explicar essa segunda transformação, o professor da UMESP avalia que atualmente é mais fácil que uma novela mobilize os hábitos, os pensamentos e os comportamentos da população do que um telejornal.
Ainda na visão de Martino, a grande diferença entre o jornalismo pré-televisão e o jornalismo de hoje é que antes ele era mais explícito. O apoio a projetos políticos ou econômicos, ou até a autoridades ou candidatos, era mais transparente. Por isso, cada veículo atendia a um público diferente e se identificava com uma parcela distinta da população. “Um dos poucos momentos em que essa divisão foi rompida foi na luta pela redemocratização do país a partir de 1978. Ali havia uma sinergia de linhas políticas, de camadas da população, de grupos até rivais em favor da democracia. Mas isso é raro na história”, ensina o professor. E algo se manteve igual de 1808 até hoje?
A resposta de Martino alimenta as esperanças dos futuros jornalistas: “O papel da imprensa não mudou. Desde a chegada da imprensa aqui, sua função sempre foi ter responsabilidade com a realidade factual, manter a postura crítica e manter a postura de investigação e eventual denúncia”, defende. E comenta que é interessante ver como cada meio de comunicação encontra sua maneira de fazer isso. “Uns mais sisudos, outros mais debochados, como o Pasquim…”.
Ana Luiza chama a atenção dos professores: todos os especialistas que participam de História da Imprensa no Brasil foram orientados a escrever para um público não específico, com linguagem acessível, mas sem perder profundidade de análise, de forma que mesmo quem nunca tenha travado contato com as teorias que ligam imprensa e história é capaz de se deliciar com a obra. Por outro lado, quem já é iniciado nesses estudos vai encontrar ali reflexões novas e cuidadosas sobre o tema. Nas palavras da historiadora, “estudantes de ensino médio, professores de ensino médio, jornalistas iniciantes, historiadores, todos estão contemplados”.
A autora aponta ainda para a extensa sugestão de bibliografia que ela e Tânia fizeram, como mais uma maneira de incentivar os leitores entusiasmados pelo tema. “Não dava para abordar tudo, então preferimos trabalhar bem alguns pontos fundamentais e sugerir novas leituras para quem quiser seguir adiante”, instiga.
*Publicado em Sinpro – SP On Line