Ainda hoje depois de tanto tempo não sei explicar.
Às vezes, penso que tudo não passou de um terrível pesadelo. Aqueles em que não conseguimos sair, despertar. E a cabeça gira e o coração acelera e o corpo sua e se contorce todo a cada imaginário golpe que recebe.
Lembro que quando acordei, tremia de frio prostrado no chão de um banheiro do quarto em um simpático hotel, nos arredores de Santiago de Compostella. Era madrugada de uma noite qualquer daquela semana que precede o fim de ano. Mas, parecia o fim dos tempos.
(Alguém me disse, tempos depois, que foi um acerto de contas, um encontro místico. Que eu precisava passar por isso para por os bofes para fora e limpar alma e corpo de todos os males e enfrentamentos do ano que hora se encerrava. 2007, se bem lembro.)
Fingi acreditar. Mas, na hora, nada entendi.
Recostei-me à parede recoberta de ladrilhos gelados e sentir a camiseta empapada de suor. O mal estar espalhava-se por todo corpo, um misto de dor e fraqueza.
Tentei me erguer. Apoiei-me na murada da pequena banheira. Dei um impulso com o que me restava de forças para me agarrar às cortinas de plásticos que servia de box. Uma imprudência. Veio tudo abaixo, desabando sobre mim.
Inanimado, voltei a posição original.
Por instantes, achei que não sairia dali. Nunca mais veria a luz do sol.
Abandonei-me à própria sorte – ou azar.
Queria voltar a dormir. Mas, a simples possibilidade de reviver aquele pesadelo sem fim me deixou em pânico. Outro arrepio de pavor afastou a letargia que me dominava. Iria à luta, fosse qual fosse o resultado.
Seria esse o tal caminho?
Não fazia idéia das horas. No escuro do humilde aposento, sequer divisava as venezianas das janelas de madeira. Faltava muito para amanhecer.
À noite, nossos medos são maiores, mais agudos, mais reais. E aquilo – fosse o que fosse: acerto de conta, encontro místico, rito de passagem, sei lá o quê – não era do bem.
Quando garoto, não pensava assim. Acordava durante a noite com o barulho das correntes do cadeado que trancava o portão. Sinal que o pai chegara – então, sentia-me aliviado de eventuais temores mundanos. Estava protegido, em plena paz.
Com os olhos cerrados, podia enveredar por meus sonhos infantis. Faria o gol mais bonito jogando pela seleção do Colégio Nossa Senhora da Glória. Ganharia uma guitarra e passaria a ser o quinto beatle. Ao clarear o dia, a caminho da escoa, o acaso faria com que nos encontrássemos na esquina de casa e, ai de mim, ela me deixaria seguir ao seu lado, encantado e feliz.
Agora, eu, o estropício, estava ali. Homem feito, já curtido em anos, estatelado naquele estúpido chão inóspito, perdido num lugar que não era o meu. Sem ânimo e vigor para sair dali, sem coragem para acreditar.
Aposto que se ela e todas as outras que vieram depois dela me vissem ali não acreditariam que vim, em solo sagrado, combater o bom combate.
Parece que as ouço dizer; não em uníssono porque cada qual teve o seu tempo:
— Tomou todas, o imprestável!
Pelo gol que não marquei…
Pela canção que não fiz…
Pelos amores idos e vividos…
Querem saber?
Tomei, sim. E daí?
(Adoro vinho espanhol!)
* Foto: Jô Rabelo (Luzes)