Conto como acho que foi…
Ele entrou naquele bar na esquina das ruas Grenfeeld com Bom Pastor. Cumprimentou os conhecidos com um aceno vago, levantou o polegar no sinal de positivo para o balconista. De pronto, dois copos surgiram à sua frente. Um para a cerveja; outro, menor, para a branquinha, o quebra-gelo.
Virou numa golada só a segunda. No instante seguinte, enfrentou o primeiro copo de cerveja com a mesma voracidade. Deu um suspiro e percebeu que as mãos pararam de tremer, os olhos clarearam.
Sentiu-se vivo, mas vazio, vazio.
Ninguém foi falar com ele.
Também não queria falar com ninguém.
Era manhã de sábado. Mas, poderia ser outro dia qualquer. Não faria diferença. Aliás, de um tempo pra cá, as coisas pareciam não fazer sentido. Não, para ele. Talvez outros pudessem sonhar, encontrar caminhos. Vislumbrar uma brecha.
Algo que valesse a pena.
Repetiu o ritual. Virou a cachaça, sorveu a cerveja. Mastigou o contraste dos sabores e o desconcerto de começar a embebedar-se àquela hora do dia. Pensou nos anos todos que dedicou ao banco. Imaginava-se importante. Riu dos contratempos, dos prazos, daquele dia-a-dia estressante. As gravatas. O relógio de ouro quando completou 30 anos de trabalho. A aposentadoria – e os trocados que lhe garantiam a vida medíocre, mas livres dos horários e dos ritos.
Teve a sincera impressão que desperdiçara o melhor da vida. Mas, nada poderia fazer. Nada.
A não ser, beber.
— Bebamos, pois… Saúde, gente!!!
Alguns sorriram cúmplices. Outros até levantaram seus copos. Muitos ficaram indiferentes. Ninguém se achegou – o que ele achou bom. Desta vez, ele próprio espantou-se com a rapidez com que fez o vira-vira.
Apoiou o cotovelo no balcão e a cabeça na palma da mão esquerda. Deixou-se estar por instantes. Não era essa a vida que um dia ele pensou levar. Será que só fez andar em círculos até chegar ali – círuculos vagos, por nada e para nada.
Filhos crescidos – dois; respeitáveis cidadãos. Netos bonitos, ainda com a vida pela frente. Todos saudáveis. A mulher a cuidar da casa. Tudo certo. Aparentemente certo. Nos conformes, como dizia um amigo. Só aquele nó na garganta. Inexplicável nó a lhe roubar o ar, a lhe tirar o chão. De onde veio essa angústia. E para onde o levaria…
Resolveu tirar essa dúvida a limpo.
Viram quando deixou uns trocados sobre o balcão. Nem se importou quando o balconista lhe disse:
— Moço, tem troco.
Subiu no primeiro ônibus que parou no ponto, logo em frente. Era o Fábrica/Pinheiros, velho de guerra. Ninguém nunca mais ouviu falar de Orlando, este era o nome do homem. Uns dizem que era coisa de mulher. Outros que estava com doença ruim. Houve quem dissesse que ele estava bebendo demais.
Os familiares choraram nos primeiros dias – mas, ninguém desesperou. Entenderam logo que a vida tem seus desígnios. Todos saíram ganhando. Depois a mulher sozinha poderia morar num apartamento menor e a avarandada casa de cômodos – o xodó do pai – ficaria para a família do filho mais velho. Afinal, os garotos estavam crescendo, precisavam de espaço para brincar. Ah! também queriam ter um cachorro de estimação…
— Ta relampiando, cadê neném?
Acordou de suas lembranças, com a pergunta de Bartira. Sorriu como sorri os que tem a alma lavada. Apontou a rede no pequeno quarto, onde dormia, a sono solto, o garoto de ano e meio, filho dos dois. Recebeu um beijo agradecido na face e um convite.
Irrecusável convite:
— Vamu aproveitá. Vem pra rede mais eu. Vem…
Os primeiros pingos da tarde começaram a cair, enviesados e grossos naqueles cafundós da Ilha do Marajó. Não esperou a chuva encorpar, menos ainda um segundo chamado. Era um homem sem passado. Entrou feliz, pleno como se nunca vivera aquela distante manhã de sábado.
Enfim, Orlando tinha o melhor da vida…
* Manhã de sábado 2
Conto como foi. Mas, não garanto…
Ele entrou naquele bar na esquina das ruas Grenfeeld com Bom Pastor. Cumprimentou os conhecidos com um aceno vago, levantou o polegar no sinal de positivo para o balconista. De pronto, dois copos surgiram à sua frente. Um para a cerveja; outro, menor, para a branquinha, o quebra-gelo.
Virou numa golada só a segunda. No instante seguinte, enfrentou o primeiro copo de cerveja com a mesma voracidade. Deu um suspiro e percebeu que as mãos pararam de tremer, os olhos clarearam.
Sentiu-se vivo, mas vazio, vazio.
Ninguém foi falar com ele.
Também não queria falar com ninguém.
Era manhã de sábado. Mas, poderia ser outro dia qualquer. Não faria diferença. Aliás, de um tempo pra cá, as coisas pareciam não fazer sentido. Não, para ele. Talvez outros pudessem sonhar, encontrar caminhos. Vislumbrar uma brecha.
Algo que valesse a pena.
Repetiu o ritual. Virou a cachaça, sorveu a cerveja. Mastigou o contraste dos sabores e o desconcerto de começar a embebedar-se àquela hora do dia. Pensou nos anos todos que dedicou ao banco. Imaginava-se importante. Riu dos contratempos, dos prazos, daquele dia-a-dia estressante. As gravatas. O relógio de ouro quando completou 30 anos de trabalho. A aposentadoria – e os trocados que lhe garantiam a vida medíocre, mas livres dos horários e dos ritos.
Teve a sincera impressão que desperdiçara o melhor da vida. Mas, nada poderia fazer. Nada.
A não ser, beber.
— Bebamos, pois… Saúde, gente!!!
Alguns sorriram cúmplices. Outros até levantaram seus copos. Muitos ficaram indiferentes. Ninguém se achegou – o que ele achou bom. Desta vez, ele próprio espantou-se com a rapidez com que fez o vira-vira.
Apoiou o cotovelo no balcão e a cabeça na palma da mão esquerda. Deixou-se estar por instantes. Não era essa a vida que um dia ele pensou levar. Será que só fez andar em círculos até chegar ali – círculos vagos, por nada e para nada.
Filhos crescidos – dois; respeitáveis cidadãos. Netos bonitos, ainda com a vida pela frente. Todos saudáveis. A mulher a cuidar da casa. Tudo certo. Aparentemente certo. Nos conformes, como dizia um amigo. Só aquele nó na garganta. Inexplicável nó a lhe roubar o ar, a lhe tirar o chão. De onde veio essa angústia. E para onde o levaria…
Ouviu o ronco conhecido do busão, o Fábrica/Pinheiros, que se aproximava da fatídica esquina. Ali, onde o Sacomã entorta o rabo e o coletivo faz a curva aos trancos e aos sustos.
É um salve-se quem puder. Passageiros são jogados para a esquerda – e aí de quem não se segurar. Quem está no meio da rua corre para escapar do mostrengo que bufa e se entorta todo. Até os que estão na calçada fazem figa para que tudo termine bem – e o bichão não se descontrole calçadas e prédios adentro.
Tudo volta à aparente normalidade no ponto de parada a 50 metros dali.
Foi exatamente para lá que o homem correu, sem sequer pagar a conta.
— Vige, o que deu nele? Saiu sem pagar…
Quem quis ver viu Orlando se esbaforir na tentativa de alcançar o ônibus.
— O que deu no homem? – perguntaram-se.
Uns disseram que era coisa de mulher.
— Desde que a amante o deixou, deu de beber.
Outros, que estava com doença ruim.
— Me disseram que está fazendo uns exames e… Sabe, né, como é a vida.
Houve quem concluísse sabiamente:
— É só um cachaceiro correndo do calote que deu.
Indiferente a tudo, Orlando viu o ônibus parar no ponto, como a lhe esperar. Não sabia exatamente o porquê fazia tudo aquilo. Para onde iria e mesmo se iria. Queria estar dentro coletivo e aí ganhar o mundo. A porta aberta era a certeza de que chegaria a tempo. Não sentia o cansaço da tresloucada corrida, nem o coração acelerar. Só tinha olhos para a porta. Assim que entrasse agradeceria a gentileza do motorista que o esperou…
Menos de cinco metros. Alguns passos e a liberdade lhe sorria. Teria coragem?
Saltou o meio fio e…
Só se escutou o estrondo do baque, depois a gritaria de quem viu a cena.
Uma exclamação calou fundo no pessoal do boteco:
— Meu Deus, a moto atropelou o véio…
Acordou na cama do hospital. Gesso por todo o corpo. Braço esquerdo estendido para a frente, perna esquerda suspensa por um fio, cabeça enfaixada. Estava imobilizado. Procurou com os olhos fazer o reconhecimento do local. Mas, só conseguiu mesmo ver o teto bege amarelecido pelo tempo.
Ouviu vozes conhecidas. A mulher, um dos filhos e talvez um médico estavam por ali. Ninguém chorava. Não havia desespero. Mas, sentiu o clima de expectativa.
— Nasceu de novo – disse o desconhecido.
— Dez dias de coma, doutor. Será que não vai ficar seqüela?
Era o filho mais velho com voz de preocupação. O soluço que imaginou ser da esposa se antecipou à resposta.
— Fiquem tranqüilo…
Agradeceu a Deus pelo diagnóstico. Não estava tão ruim assim. De imediato, refez a cena e não atinou com os fatos. Como não chegou ao ônibus? O que teria acontecido? Desistiu por hora, pois se lembrou do pior. A morena Bartira, a criança dormindo, o paraíso da Ilha do Marajó – era tudo ficção. Sonho de um ser inconsciente – e inconseqüente.
Parecia tão real.
— Vem pra rede mais eu. Vem…
Suspirou. Quis voltar o tempo, refazer a manhã de sábado. Conformou-se com a certeza do agora:
Estar vivo é o melhor da vida.
* Manhã de sábado 3
Conto como foi…
(Porque tudo leva crer que sempre é assim.)
Ele entrou naquele bar na esquina das ruas Grenfeeld com Bom Pastor. Cumprimentou os conhecidos com um aceno vago, levantou o polegar no sinal de positivo para o balconista. De pronto, dois copos surgiram à sua frente. Um para a cerveja; outro, menor, para a branquinha, o quebra-gelo.
Virou numa golada só a segunda. No instante seguinte, enfrentou o primeiro copo de cerveja com a mesma voracidade. Deu um suspiro e percebeu que as mãos pararam de tremer, os olhos clarearam.
Sentiu-se vivo, mas vazio, vazio.
Ninguém foi falar com ele.
Também não queria falar com ninguém.
Era manhã de sábado. Mas, poderia ser outro dia qualquer. Não faria diferença. Aliás, de um tempo pra cá, as coisas pareciam não fazer sentido. Não, para ele. Talvez outros pudessem sonhar, encontrar caminhos. Vislumbrar uma brecha.
Algo que valesse a pena.
Repetiu o ritual. Virou a cachaça, sorveu a cerveja. Mastigou o contraste dos sabores e o desconcerto de começar a embebedar-se àquela hora do dia. Pensou nos anos todos que dedicou ao banco. Imaginava-se importante. Riu dos contratempos, dos prazos, daquele dia-a-dia estressante. As gravatas. O relógio de ouro quando completou 30 anos de trabalho. A aposentadoria – e os trocados que lhe garantiam a vida medíocre, mas livres dos horários e dos ritos.
Teve a sincera impressão que desperdiçara o melhor da vida. Mas, nada poderia fazer. Nada.
A não ser, beber.
— Bebamos, pois… Saúde, gente!!!
Alguns sorriram cúmplices. Outros até levantaram seus copos. Muitos ficaram indiferentes. Ninguém se achegou – o que ele achou bom. Desta vez, ele próprio espantou-se com a rapidez com que fez o vira-vira.
Apoiou o cotovelo no balcão e a cabeça na palma da mão esquerda. Deixou-se estar por instantes. Não era essa a vida que um dia ele pensou levar. Será que só fez andar em círculos até chegar ali – círculos vagos, por nada e para nada.
Filhos crescidos – dois; respeitáveis cidadãos. Netos bonitos, ainda com a vida pela frente. Todos saudáveis. A mulher a cuidar da casa. Tudo certo. Aparentemente certo. Nos conformes, como dizia um amigo. Só aquele nó na garganta. Inexplicável nó a lhe roubar o ar, a lhe tirar o chão.
De onde veio essa angústia? E para onde o levaria?
Ouviu o ronco conhecido do busão, o Fábrica/Pinheiros, que se aproximava da fatídica esquina. Ali, onde o Sacomã entorta o rabo e o coletivo faz a curva aos trancos e aos sustos.
Se fosse homem com aga maiúsculo entraria no bicho sem olhar o letreiro e ganharia o mundo. Um dia ainda tomaria essa decisão – e ficaria livre de todas as amarras, de todos os compromissos. De toda essa chatice.
Pensou em correr e não deixar escapar o ônibus e a oportunidade.
Que o quê. As quatro cachaças e as três cervejas viraram chumbo na corrente sanguínea. Sentiu uma leseira, uma largação. Deitou a cabeça no balcão e se ajeitou torto mesmo.
— Vige, o que deu no homem? Dormiu…
Era o balconista Gil, acostumado às bebedeiras de Orlando.
— Ainda bem que tenho o celular do filho. Qualquer coisa o moço vem buscá-lo.
Aliás, por ali, já haviam se acostumado àquela cena. Orlando resfolegava a sono solto. Mas, porque era sábado e ainda de manhã, a turma resolveu maldizer o amigo que, de uns tempo para cá, virara um pé de cana.
— Desde que a amante o deixou, deu de beber.
— Me disseram que está fazendo uns exames e… Doença ruim.
— Vocês sabem? O de bêbado não tem dono.
— Gente, por favor, é só um cachaceiro dormindo sobre o balcão.
Gastaram o repertório de bobagens. Indiferente, Orlando parecia bem feliz no seu sonhar.
Não demorou, porém, acordou ao sentir a mão de alguém pesar sobre o ombro. Abriu os olhos. Não entendeu a expressão de susto nos olhos do filho. Ouviu vozes conhecidas – os amigos do bar, se é que podia chamar aquela turba de amigos?
Havia um clima diferente, percebeu.
— O que foi?
— Vou levar o senhor para casa.
Era o filho mais velho com voz de preocupação.
Orlando se aprumou como pôde. Pôs-se em pé amparado pelo braço do filho. Achou que lhe devia uma satisfação.
— Fique tranqüilo. Estou bem. De ressaca. Mas, bem.
Riu de si mesmo.
Quer dizer que a bela Bartira, a criança dormindo, o paraíso da Ilha do Marajó – tudo ficção. Tudo sonho de um ser inconsciente – e inconseqüente.
Por quanto tempo dormira?
O sonho. Parecia tão real.
— Vem pra rede mais eu. Vem…
Gostou de lembrar a voz da bela morena Bartira, que só existiu em seus devaneios.
— Pai, o senhor precisa parar de beber. Pensamos no pior. Uma moto atropelou um homem perto do ponto de ônibus. O cara está nas últimas. Talvez nem ande mais. Já imaginou se acontece com você?
Foi a vez de Orlando espantar-se.
O ônibus, a corrida, a porta aberta a lhe esperar. O baque. O hospital…
Coincidência, pesadelo, premonição.
Balançou a cabeça.
Preferiu não contar ao filho – aliás, não contaria a ninguém.
A vida tem seus mistérios.
Àquela hora, naquela manhã de sábado, Orlando perdeu a vontade de desvendá-los.
O melhor da vida é deixar tudo como está…