— Teve uns caras (críticos de música) que me deram três dias de vida. Ano passado, completei 20 anos de carreira, com um trabalho que me deu disco de ouro. Então, é porque sou bom. Bom mesmo!
Ao lançar o vigésimo primeiro elepê individual, “Mulher”, pela Polygran, ErasmoCarlos revela-se bem diferente do irrequieto Tremendão, considerado o mentor da Jovem Guarda. Em meio à coletiva que deu à imprensa no Hotel Brasiltown, a frase em epígrafe soou natural, espontânea. Aliás, esse carioca de 40 anos, cabelos ralos, levemente grisalhos e encaracolados, de há muito se despiu da pose de artista.
— Sou um cara tranqüilo. Pai de três filhos, casado, que gosta de fazer coisas comuns como ir ao futebol (sou Vasco no Rio e Palmeiras em São Paulo), ao cinema, à praia.
Abandonou inclusive a fama de turrão e briguento que lhe perseguiu nos idos de 60.
— Há dez anos não brigo e não dou soco em ninguém. Sou o que se pode chamar de pacifista.
Erasmo confessa que, na verdade, nunca conseguiu conviver legal com essa história de mito. É sufocante, explicou. Ser popular é agradável, mas com ressalvas.
— Eu preciso viver como todas as pessoas. Sou simples. Considero isso muito importante. Adoro minha mulher e os meus filhos – o de 18 anos, por exemplo, me coloca a par dos problemas da nova geração. De quando em quando, pinta um autógrafo e coisa e tal. Mas, numa boa, sem correria, agarramento, roupas rasgadas etc.
O DISCO
Um disco em homenagem à mulher é como se pode definir o mais recente trabalho de Erasmo. Ele, quem sempre fez música falando da mulher, diz que nunca havia dedicado um disco inteiramente a elas. Às barras que elas agüentam no dia-a-dia; em casa, na rua, cuidando dos filhos, do marido.
Erasmo, com a palavra:
— A gente luta, luta, e acaba sendo vencido. De repente, descubro que não posso combater certas coisas da minha criação, provocadas pela educação machista que tive como todo homem brasileiro. Acho que tenho me libertado de várias delas. Diria até que estou bem melhor do que dez anos atrás, e continuo tentando.
— Foi nesse processo que eu me toquei: foi uma mulher que me fez vir ao mundo e sempre girei em torno delas. Não elas em torno de mim. Encontrei a mulher amada e vejo exemplo de mulheres maravilhosas como vejo outros homens também girando em torno das mulheres. Aí, tomei consciência e me bateu uma coisa na cabeça: será que Deus é mulher? Desses devaneios, dessas interrogações, dessas teorias, nasceu tudo.
— Aconteceu de um dia ter uma briga com minha mulher, a Narinha – e ela, num desabafo, começou a escrever muitas coisas. Discutia a fragilidade da mulher (mentira que está contida nessa idéia), a solicitação diária que recebe de vários lados (do marido, dos filhos da casa, dela mesma como pessoa), a cobrança velada que cada mulher sofre de outras mulheres – enfim, ela desabafou tudo no papel. Estava confusa diante deste mundo machista que tanto ainda oprime a mulher. No dia seguinte, eu li e achei maravilhoso porque todas as inquietações dela caminhavam com as minhas interrogações, com os questionamentos que me fazia naquele momento. Daí, surgiu a primeira faixa, “Mulher”
SEM POLÊMICAS
Sobre colocação semelhante de outros artistas sobre o assunto, como Gil, Caetano e o próprio John Lennon, Erasmo acha que é o momento que todos vivemos.
— Cada um com a sua vivência, estamos fazendo uma declaração de fé do novo homem. Eu, por mim, sempre fui um observador da minha vida. De uns dez anos para cá, comecei a valorizar a contemplação e acho que começo a colher os resultados. Daí vêm as conclusões que acabam por inundar as minhas músicas.
Erasmo avisa. Quer distância das polêmicas.
— Eu não me chamo Erasmo Gabeira. Nem estou ditando normas de vida para ninguém. Não quero que ninguém me siga por seguir. Estou mostrando como sou como ser humano. Transo muito o amor. Amor de amigo, de filho, de pai, de marido, Amor é entrega. Seo que eu canto servir para melhorar a vida de alguém, ótimo.
A CAPA e…
Além das canções, outros dois pontos se realçam no disco “Mulher”: a surpreendente capa (Narinha aparece amamentando Erasmo) e a produção, oportunamente econômica.
Fala Erasmo:
— Eu e Narinha ficamos muito perdidos, no começo, sem saber como fazer a capa. Surgiram milhões de idéias, mas nenhuma se encaixava direitinho no clima do disco. De repente, Narinha teve esta luz. Deu a sugestão que foi prontamente aceita por mim. Imediatamente, visualizei o que ela sugeria e percebi que era perfeita para o meu trabalho. Difícil foi convence-la a fazer a foto. À primeira vista, as pessoas encaram pelo lado pornográfico, pelo lado erótico. Até de um jeito grosseiro. Mas, na minha concepção, tinha que ser uma coisa Bergman, sabe, uma coisa doce. Em resumo, o que pretendemos foi passar o nosso amor.
— Quis cooperar com a gravadora. A crise do disco anda braba, não é? Então, como um artista estabilizado quis dar o exemplo – poucos músicos, poucas horas de estúdio, capa em branco e preto e tudo bem. No final, o resultado foi maravilhoso. Aliás, poucas pessoas causam menos confusão e o astral fica bem melhor.
… A PRODUÇÃO
Quem assina a produção é Jairo Pires, com arranjos e regência do maestro José Roberto Betrami. Participam os músicos: Alex Malheiros e Paulo César (baixo), Mamão e Roberto Silva (bateria), Djalma Correa e José Roberto (percussão), Rick Ferreira (violão de aço, guitarra, steel e banjo), Aloísio Petrus (violino), e Betrami (órgão e piano). As músicas: “Mulher”, “Minha Superstar”, “Pega na Mentira”, “A Lenda do Ciúme”, “Filho”, “A Carta do Índio”, “Gatinha Manhosa”, “Dor de Cabeça”, “Feminino Coração de Deus” e “Primogênito”.
— Meus discos, minhas músicas refletem bem o que eu sou. Quero continuar como um ser mutante, um ser que se atualiza, que se questiona, que busca o novo.Aliás, meu relacionamento com Narinha procura salientar bem esse aspecto: a individualidade. A gente quer vencer a vida. Procuramos viver.