Não se sabe exatamente sob qual pretexto a Editora Abril lançou recentemente uma antologia das reportagens da revista Realidade, decididamente um marco na história da Imprensa contemporânea brasileira. Há quem diga que essa coletânea, a bem da verdade, deveria ter circulado em 96 quando a revista completou 30 anos da fundação. Sabe-se lá. De qualquer forma, convém aplaudir a iniciativa. Realidade foi a quintessência do jornalismo investigativo, projeto arrojado gráfica e editorialmente que vingou na segunda metade dos anos 60; mais precisamente de 66 a 76.
Quase que igualmente por obra do acaso, as editoras Ulbra e ARG estão publicando em livro a tese de doutorado do professor José Salvador Faro que estuda e analisa justamente o período de maior turbulência e criatividade de Realidade, entre abril de 66 a dezembro de 68.
O professor Faro esteve na tarde de terça-feira (28/09) no Seminário da Cátedra da Unesco na Universidade Metodista do Estado de São Paulo para falar sobre o livro “Revista Realidade –1966/1968. Tempo de Reportagem na Imprensa Brasileira” e debater sobre o momento atual da Imprensa nativa.
Aliás, a comparação é mesmo inevitável. E, diga-se, bem oportuna, especialmente para quem vivencia o atual momento da Imprensa nativa. O repórter se transforma, hoje, em tecnocrata da informação, submisso aos manuais de Redação, à ditadura do dead-line e dos editores e aos interesses do patrão. Ou seja, muito distante do jornalismo que se praticou naqueles tempos, denominados por alguns de românticos.
Segundo o professor, a grande mola propulsora da revista foi a liberdade com que a Redação trabalhava qualquer que fosse o tema. Não houve, neste primeiro momento, ingerências administrativas e/ou publicitárias e comerciais na pauta. Menos ainda qualquer injunção política ou institucional.
Neste primeiro momento da Realidade, o repórter tem o domínio do que escreve. Ele vive uma espécie de excitação criativa, faz parte da notícia – seja qual for o rumo que esta tomar. Trabalha o factual como parte inerente ao cotidiano do leitor. Há sempre uma temática quente, preferencialmente voltada para o comportamental – exatamente quando eclode a Revolução dos Costumes. “É proibido proibir” – diz o lema dos estudantes franceses em 68, anunciando o mote dos novos tempos e do que pressupunham a nova ordem mundial.
Em sintonia com essa trinca na alma do mundo, os repórteres de Realidade chutam o balde do tradicionalismo estanque da nossa Imprensa. A unidade básica da reportagem não é mais apenas o fato, mas os múltiplos estilhaços que formam uma realidade em constante mutação. Não há mais o olho impessoal. O repórter vive a cena, faz um meticuloso trabalho de reconstituição e envolve o leitor com um texto que desenvolve o estilo e a sensibilidade para tecer a teia da informação.
Não por acaso que Realidade foi contemporânea de uma tendência da Imprensa americana denominada New Journalism ou Parajournalism. Tanto lá como na publicação da Abril trabalha-se especialmente as técnicas narrativas, próprias ao romance realista – imediatismo da situação, realidade concreta das cenas, envolvimento emocional e a qualidade de absorver a atenção do leitor da primeira à última linha do texto.
Também não é por acaso que o auge da publicação é exatamente o período analisado pelo professor. A partir daí, com a implantação do Ato Institucional n.5, a ação da censura quebra o projeto inicial de Realidade que perde em qualidade e inicia uma fase de franco declínio até desaparecer em 76, debilitada e ausente das grandes questões nacionais.
A própria Editora Abril parece se desinteressar do título – e, à época, apostou num projeto de revista de informação, que resultou em Veja. Um projeto menos ousado, gráfica e editorialmente. Fica claro esse viés no episódio que culmina com a demissão do primeiro diretor de Redação, jornalista Mino Carta. Uma demissão negociada entre os Civita e os então senhores do Poder. Em troca da degola do jornalista, a revista tem o fim da censura prévia – e, mesmo a discreta distância, a família/empresa se propõe a ser, digamos, mais cuidadosa com o que pode ou não pode ser publicado.
Passa a valer a voz do dono, e não mais o dono da voz…
* Publicado na revista Mídia Fórum, editada pela Cátedra da Unesco e da Pós em Comunicação Social da Universidade Metodista de São Paulo.