por Ricardo Kotscho
Universidade Metodista/Aula Magna/16.3.2015
Bom dia,
Antes de mais nada, quero agradecer aos professores Eduardo Nunomura e Rodolfo Martino pelo honroso convite para estar com vocês aqui hoje.
Como não sou professor e não sei falar de improviso, vou ler este texto que preparei baseado num roteiro que eles me mandaram.
1. 50 anos depois (1964-2014)
Comecei minha carreira trabalhando em jornais de bairro de São Paulo no ano de 1964, logo após o golpe que jogou o país numa ditadura militar por longos 21 anos.
Já completei, portanto, 50 anos de profissão.
E sobrevivi, como vocês podem constatar…
Ponham-se agora no meu lugar e imaginem o que vocês poderiam dizer daqui a 50 anos, ao fazer um balanço do que se passou neste período, e ainda fazer uma projeção sobre o que pode acontecer nos próximos 50.
Pois foi mais ou menos o que me pediram. Não é fácil, mas vou tentar.
Para começo de conversa, vivemos hoje a mais grave crise enfrentada pelo nosso país e pelo jornalismo desde que me conheço por gente.
O País e a imprensa estão numa encruzilhada.
Das decisões que tomarmos agora vai depender o futuro da nossa profissão e do nosso país.
Para onde estamos indo? Aonde queremos chegar?
Estas são as perguntas que devemos nos fazer. Encontrar as respostas é uma tarefa de todos.
Não dá para separar o profissional do cidadão, assim como a história recente do país é umbilicalmente ligada ao papel exercido pela imprensa em cada momento.
Com raríssimas exceções, a chamada grande imprensa teve uma participação decisiva na armação do golpe cívico-militar de 1964, assim como, duas décadas depois, teria importante papel no processo de redemocratização do país.
Escrevo antes das marchas programadas para este domingo, com o apoio ostensivo da mesma imprensa, que continua nas mãos dos mesmos donos, cada vez mais determinados a derrubar o governo eleito, assim como já fizeram antes com Getúlio e Jango.
Só espero que a história não se repita, nem como farsa.
2. Vida de repórter
Atravessei a maior parte destes 50 anos trabalhando como repórter _ a melhor profissão do mundo, segundo Gabriel Garcia Marquez.
Dos jornais de bairro de Santo Amaro passei direto para o Estadão, o principal jornal brasileiro da época, em 1967, quando eu tinha 18 anos.
Entrei como estagiário e só recebi meu primeiro salário seis meses depois.
Quer dizer, pagava para trabalhar, graças à ajuda da minha mãe, que, aliás, não queria que eu fosse jornalista, como o pai dela.
No Estadão, onde fiquei mais de 10 anos e que foi minha grande escola (eu não terminei nenhuma faculdade), passei pelas mais diferentes funções, chegando a editor, chefe de reportagem e repórter especial.
Dali saí para ser correspondente do Jornal do Brasil na Europa por dois anos, e depois trabalhei em praticamente todos os principais veículos impressos e televisivos do país, com exceção da revista Veja.
Esta história é muito longa, poderia passar dias aqui contando, mas vocês podem encontra-la no livro “Do Golpe ao Planalto _ Uma vida de repórter”, publicado pela Companhia das Letras, em 2006.
Neste resumo, prefiro falar da minha paixão pela reportagem, um amor à primeira vista e que nunca acaba.
Repórter será sempre o coração e a alma de qualquer redação, em qualquer plataforma. É a melhor maneira de você conhecer pessoas e lugares, descobrir novidades e ver a vida acontecendo para poder contar depois.
3. Histórias humanas
“Poesia é encontrar uma árvore esquecida à beira da estrada e glorifica-la.
O jornalista de raça é um mágico. Transfigura o anônimo em notável, celebra o desapercebido, enquadra o texto no contexto. Enquanto nós nos limitamos a olhar, ele vê as coisas, pessoas, a paisagem. Vê e conta”.
Esta é a melhor definição de repórter que já li na vida. Quem a escreveu a mão foi o velho amigo Ulysses Guimarães, no prefácio do meu livro “Explode um Novo Brasil _ Diário da Campanha das Diretas”, publicado pela Editora Brasiliense em 1984.
É chato falar da gente mesmo. Afinal, repórter é pago para escrever sobre a vida dos outros…
Por isso, prefiro transcrever outro trecho do prefácio do doutor Ulysses em que ele fala do meu trabalho _ o maior prêmio que já recebi na vida.
“Andei com ele por praças e ruas deste infindável país. Entupidas de gente, de berros e de gestos de revolta e de esperança. Quando lia suas reportagens na Folha de S. Paulo ficava surpreendido e encantado.
“Como é que o Ricardo viu aquele jovem frenético, registrou a originalidade daquele dístico, enxergou aquela mulher chorando, ouviu daquele velho as histórias de outros comícios e outros personagens?
“Ele não se absorve nas estrelas do acontecimento. Sua pena é também alto-falante da multidão, assegura-lhe o papel de personagem no grande e terrível drama social brasileiro.
Brasília, 18 de abril de 1984
Deputado Ulisses Guimarães”.
Pois é, nada tenho a acrescentar: repórter é exatamente isso, não tem muito segredo.
Uma vez um jornalista acadêmico me criticou por só escrever “matérias humanas”. E eu lhe respondi, perguntando: e o que queria que eu fizesse, matérias animais, minerais, siderais, se nosso ofício é exatamente falar da aventura humana para humanos?
São cada vez mais raras estas matérias na nossa imprensa, e eu não sei dizer se isto se deve às empresas ou aos profissionais que não demonstram mais interesse e tesão em fazê-las.
Acho triste isso porque o Brasil é um país em que você tropeça em boas histórias, em qualquer lugar.
Estão só esperando alguém para conta-las. Pode ser você, que está aqui me ouvindo, por exemplo… Basta levantar a bunda da cadeira, largar o telefone e a internet, sair da redação e ir para a rua. Uma boa história sempre encontrará lugar para ser publicada, nem que seja só no teu Facebook.
4. No lugar certo, na hora certa
Por insondáveis mistérios do destino, uma coisa que sempre me ajudou na carreira foi estar no lugar certo, na hora certa, tanto nos empregos como nas reportagens.
Isso não dependeu só de sorte, mas também da disposição de correr o risco de mudar quando não me sentia bem num lugar ou procurar um novo ângulo para uma velha história.
Até hoje, nunca fui demitido de um emprego. Nunca dei a nenhuma empresa o prazer de me mandar embora e me dei bem nas trocas que fiz, não tenho arrependimentos.
Assim, trabalhei nas principais redações do país nos melhores momentos das diferentes empresas e depois acabei voltando para algumas delas.
Certamente isso não aconteceu pelos meus belos olhos nem por ter bons amigos. Por mais que você já tenha feito, tem que estar sempre disposto a mostrar serviço, não recusar uma pauta, acreditar em todas.
Pautas raramente caem do céu. Quando comecei, nem pauteiro existia nas redações. É você que precisa correr atrás dos bons assuntos, ter iniciativa, ficar sempre antenado, cultivar fontes e chegar cedo para estar no lugar certo na hora certa.
Um bom caminho é não ser arrogante, não achar que você já sabe tudo e se preparar bem antes de sair a campo, descobrir bons personagens e traçar um roteiro para não perder tempo.
Hoje, com o santo doutor Google, isso ficou muito mais fácil, e não é vergonha consulta-lo para saber como se escreve determinada palavra. Feio é escrever errado e não admitir o erro.
Uma vez, no final dos anos 1970, quando era correspondente do Jornal do Brasil na Alemanha, me mandaram cobrir uma importante reunião de chefes de Estado europeus na Dinamarca.
A discussão era sobre bombas de nêutrons, e eu não tinha a menor ideia do que se tratava. A reunião já tinha começado, não deu tempo de fazer uma pesquisa. Era um sábado à tarde, fui correndo para o aeroporto.
A reunião corria a portas fechadas e eu nem sei falar inglês. Estava no mato sem cachorro. Por sorte, encontrei lá um jornalista alemão, da revista “Der Spiegel”, que era especialista no assunto e me explicou tudo o que estava acontecendo. Mandei matéria no mesmo dia. E, além de garantir meu emprego, fui muito elogiado, acharam que eu era um gênio… Se eles soubessem…
5. Amigo e assessor de Lula
Quando voltei da Alemanha, no final de 1978, fui trabalhar na revista IstoÉ com o Mino Carta e logo ele me mandou a São Bernardo do Campo para entrevistar um tal de Lula, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos, que eu não conhecia pessoalmente.
Para mim, Lula era só uma pauta, mas logo descobriria que São Bernardo, palco das grandes greves, tinha se transformado no principal centro de resistência à ditadura, atraindo todo tipo de gente em torno do sindicato.
Lula não foi muito com a minha cara. Como eu usava barba, e ele não, me chamou de “mais um intelectualzinho da USP que vem aqui pra me encher o saco”. Mas logo ficamos velhos amigos, graças ao Mino Carta e a um amigo comum, o Frei Betto.
Dez anos depois, fui visita-lo no hospital onde ele tinha feito uma cirurgia, pouco antes de começar a campanha presidencial de 1989, a primeira depois da volta das eleições diretas.
Nossas famílias já eram muito próximas e acho que por isso ele me convidou para ser seu assessor de imprensa. Eu nem era filiado ao PT, como não sou até hoje.
Para encurtar a história, fui seu assessor em 1989, depois em 1994 e, finalmente, em 2002, quando Lula foi eleito e me chamou para ser seu secretário de Imprensa, cargo que ocupei por dois anos. Continuo seu amigo até hoje, mas temos nos falado pouco ultimamente.
Neste trabalho de assessor, conheci o outro lado do balcão e vi como é a conflituosa relação da imprensa com o poder.
Aprendi muito, tenho orgulho do trabalho que fiz no governo, mas não recomendo este serviço para ninguém. Não faz bem para a saúde nem para a alma. É melhor ser repórter.
6. País melhor, imprensa pior
Olhando para trás, se for comparar o Brasil de quando comecei a trabalhar na profissão com o de hoje, só posso dizer que melhoramos muito nestes 50 anos, progredimos em todas as áreas da vida nacional, menos na imprensa.
Claro que os barões da imprensa e seus porta-vozes vão dizer exatamente o oposto. Para eles, o Brasil está se acabando, afundando na lama da corrupção, nunca esteve tão ruim. E a mídia brasileira, ao contrário, é a sétima maravilha do mundo _ moderna, independente, com profissionais da maior competência, o único orgulho nacional.
O fato é que, ao longo dos últimos anos, criou-se imenso abismo entre a imprensa e o país, um cada vez mais distante do outro, vivendo realidades completamente diferentes.
O Brasil real não está na mídia e a mídia fala outra língua, vive em outro país.
Encontram-se ambos agora numa encruzilhada. A partir do momento em que a grande imprensa assumiu oficialmente a liderança da oposição _ como anunciou a então presidente da Associação Nacional dos Jornais, Judith Brito _ tivemos um desequilíbrio na relação entre os poderes.
Chamada de quarto poder, a imprensa passou gradativamente a ocupar o papel dos outros três, querendo se tornar o primeiro e único. Passou a comandar a pauta política, a julgar o que é certo ou errado e a criar suas próprias leis, que podem ser resumidas numa só: a lei do mais forte.
Ao mesmo tempo, a informação se democratizou com o advento da internet e das novas mídias, a maior revolução nas comunicações humanas desde que o alemão Johannes Gutenberg inventou a imprensa, como a conhecemos hoje, cinco séculos atrás.
Podemos agora ser todos receptores e emissores de informações e opiniões, para o bem ou para o mal, dependendo do uso que fazemos deste instrumento. Isto não quer dizer que os jornalistas nos tornamos dispensáveis, muito ao contrário: na zona em que se transformou a blogosfera, nunca fomos tão necessários para apurar, selecionar e editar informações confiáveis.
Por isso, urge a criação de um marco regulatório das comunicações, para estabelecer regras do jogo claras e civilizadas. Mas este debate foi interditado pela velha mídia familiar, a mais retrógrada do mundo, que ainda manda no Congresso Nacional e domina o Judiciário.
7. O mercado e o futuro
Vamos agora apagar o cenário pouco animador descrito acima, mas que é a realidade destes dias difíceis que vivemos no momento, no país e na imprensa.
Não posso vender ilusões para vocês, nem brigar com os fatos.
O fato, porém, de ser assim hoje, não quer dizer que será assim amanhã e sempre.
Já foi muito pior, acreditem. Era muito mais difícil ser jornalista em 1964 _ quando o mercado era restrito a meia dúzia de redações em cada cidade e a liberdade foi-se tornando cada vez menor _, do que agora, que as novas mídias abriram infinitas possibilidades de trabalho.
Vamos fazer de conta que estamos em 2065.
Olhando para trás, o que veremos daqui a 50 anos?
É nisso que vocês precisam pensar e acreditar: não se contentem com o que existe, mas com o mundo que vocês poderão criar.
Na encruzilhada, estamos vivendo o final de uma, época em vários sentidos e latitudes _, da falência do velho sistema político à crise da velha imprensa.
Crise em grego quer dizer oportunidade. E é nos momentos de crise que surgem as oportunidades de mudança.
Eu mesmo, que já não sou tão jovem, mudei minha vida profissional faz dez anos, ao trocar a mídia impressa pela eletrônica.
Virei blogueiro e depois comentarista de televisão, coisas com que nunca tinha sonhado na vida.
E continuei fazendo reportagens para a revista Brasileiros, que ajudei a criar, até onde a saúde permitiu.
Não senti nenhuma diferença ao trabalhar para diferentes meios. Para mim, tanto faz qual é a plataforma: eu tenho que ter uma boa história, uma novidade para contar.
Esta é a natureza da nossa profissão e isto nunca vai mudar: precisamos estar sempre de olhos e ouvidos bem abertos para ver e ouvir o que há de novo, algo capaz de surpreender nossos leitores, ouvintes, internautas ou telespectadores, tanto faz.
Se você não acha ou não gosta do emprego, inventa um, como costuma dizer o Mino Carta.
Hoje, com a internet, ficou muito mais fácil.
Deixem de lado os preconceitos e os medos, e fiquem bem atentos aos sinais do mercado, que mudam a toda hora.
Só para vocês terem uma ideia, a maioria dos empregos já não está nas redações dos grandes veículos, mas nas assessorias de imprensa, nas agências de comunicação, na imprensa comunitária e sindical _ ou mesmo em casa. Basta ter uma boa ideia e um computador razoável.
Sim, cada vez é maior o número de profissionais que criaram um nicho de mercado e ganham a vida sem precisar sair de casa.
É até engraçado eu dizer isso porque passei a vida toda dizendo que lugar de repórter é na rua.
Ainda acho, mas as coisas mudam e a gente tem que se adaptar à realidade.
Tem espaço para todo mundo em qualquer lugar. Só precisamos descobrir aonde, e ir atrás, definir o que a gente quer, estabelecer a nossa meta e a nossa ética.
O importante é fazer o que a gente gosta e ganhar um dinheiro para pagar as contas no fim do mês.
Não é a função, o cargo ou a empresa que vai fazer o bom profissional, é o contrário.
Nesta profissão, só não vale ser infeliz, ficar reclamando da vida.
Vocês escolheram a melhor profissão do mundo e vivem no melhor país do mundo.
Conheci, trabalhando, este país inteiro, de ponta a ponta, e boa parte do mundo. Sei do que estou falando.
Posso garantir a vocês que vale a pena ser jornalista e não é preciso sair do Brasil para ser feliz.
Espero que vocês possam dizer a mesma coisa daqui a 50 anos. Boa sorte!
Já falei demais.
Agora, vamos conversar.
Obrigado pelo convite.
Ricardo Kotscho
* Leia também o blog Balaio do Kotscho