Nós o chamávamos de Devito ou Deva, embora o nome original fosse Devair.
Começou como boy no departamento administrativo da velha redação de piso assoalhado e grandes janelões para a rua Bom Pastor. Era pouco mais que um garoto, tinha a língua presa e nos divertíamos com o jeito, digamos, alternativo com que o Deva procurava tocar a vida.
Nas feições e no estilo, com alguma boa vontade, poderíamos ver nele uma cópia de Jimmy Hendrix, um de seus ídolos. Havia outro; ou melhor, outra: Jane Joplin.
Só pelas referências, dá para perceber que o figura era da pá virada. Diferentão.
II.
Mesmo assim, no jornal, cativava a todos e, de quebra, sempre nos surpreendia com alguma tirada que causava um barulho daqueles. Uma de suas manias era chamar a todos pelo segundo nome.
A mim, ele chamava de Carlos enquanto todos os demais me chamavam de Rodolfo. O Made, cujo nome de batismo era Waldemar Roberto, para o Deva, era simplesmente Roberto ou Beto – e assim por diante,
Nos dias em que o Deva estava, digamos, mais alternativo, eu passava a ser Carlos Nascimento por força do jornalista que trabalhava na TV Globo àquela época.
O Made que passara a ser Roberto, vocês já devem imaginar que, nessas luas, o Deva o chamava de Roberto Carlos, mesmo que o Made preferisse um sambão rasgado como trilha sonora para suas andanças.
Curioso é que, de volta ao estado normal, o maluco-beleza não só preservava os nossos novos nomes como, num relance criativo, passava a nos identificar unicamente como Nascimento e Carlos.
Ele fazia isso com todos.
Deu para ‘pescar’ o tamanho da confusão?
III.
Quando estávamos presentes, até que era possível se desvencilhar dos equívocos que inevitavelmente aconteciam. Mas, se o personagem citado não estivesse por perto, era barraco na certa.
Várias vezes, atendi a pessoas que chegaram à redação procurando pelo Nascimento que era colunista do jornal. Assim como o Made recebeu outras tantas que queriam falar com o Roberto, o filho da Lena, ou o Zé Roberto que trabalhava na administração.
Com o Devair inspirado não havia tédio ou rotina na velha redação. Após alguns minutos de bagunça, logo descobríamos a fonte de todos o enrosco.
IV.
Tentávamos dissuadi-lo dessa loucura, mas ele era lacônico nas desculpas:
– Ih! Foi mal…
Não era raro também que, após a confusão, o Deva nos procurasse em particular e bastante preocupado. Era quando nos alertava:
– Cara, você precisa se cuidar. Está com sintomas de crise de identidade. Quando alguém esquece o próprio nome, não é boa coisa, não…