Numa das entressafras da minha vida conjugal, namorei uma jovem que era vidrada em leitura de cartas. Levou-me a uma cigana, acho que falsificada; era apenas uma húngara de terríveis olhos verdes. Deu-me o baralho, que misturasse as cartas à vontade, depois arrumou-as na mesa coberta por um sinistro pano preto que parecia ter sido a capa de uma bruxa aposentada.
Não lembro as cartas que saíram, mas lembro o significado delas. Resumindo: meu caso era perdido, não teria futuro. Não dei muita importância à informação, mas a moça quis checá-la com outra famosa cartomante, uma baiana que atendia nas imediações da Gamboa. Embaralhei as cartas vigorosamente, para ver se delas sairia alguma coisa que prestasse.
Não deu outra. Ela confirmou a húngara de olhos verdes: eu não tinha futuro.
Esse futuro que não tive é hoje o meu passado, feito de cartas que não mentem jamais e de pedaços que também mentem, mas nem sempre a meu favor.
•Texto de abertura da obra “Eu, aos pedaços – Memórias”, de Carlos Heitor Cony. O autor carioca, de 90 anos, e o livro foram tema da Oficina de Leitura de hoje.
As crônicas escolhidas foram: “Mila”, “A revolução dos caranguejos”, “Trem com moça e jovem de batina” e “Fim de Caso num final de ano, em Roma”. São textos imperdíveis.
Confiram!