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Sonhos e utopias

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O amigo Poeta me provoca sobre a crônica de ontem.

No seu entender, os textos que publiquei revelam pouco, quase nada, do garoto que fui e viveu aqueles dias incandescentes.

– Quantos anos você tinha?

– O que fazia?

– Onde estudava?

– Tinha consciência do momento histórico que vivia?

– Qual a principal lembrança que tem daquela época?

Fez uma saraivada de perguntas.

Segundo o amigo, “o olhar histórico e livresco” que trouxe daqueles acontecimentos já é conhecido de muita gente. Por isso, disse ele, “as minhas sensações como um jovem da época seriam mais enriquecedoras para os meus incautos leitores”.

II.

Ô Poeta, Poetinha camarada que não é o Vinicius, penso que, de alguma forma, amigo, o texto embedado no post de ontem trouxe muito da rotina de jovens remediados que moravam em um bairro remediados e não tinham plena consciência de tudo o que estava acontecendo (até porque havia a policialesca censura dos meios de comunicação), mas sonhavam com um mundo melhor.

As quatro primeiras provocações, Poeta, penso que, modestamente, estejam bem resolvidas no texto MAIO DE 1968.

Releia, por favor!

III.

O que não disse ali e que me impressionou bastante tento agora lhe contar.

Permite?

IV.

Durante os meses de abril, maio e um tanto de junho, eu trabalhei como balconista de uma loja de discos, ali, na rua São Bento, próximo ao Largo de São Francisco, centro de São Paulo.

Tinha 17 anos, e foi este o meu primeiro emprego.

O pai que me arranjou o trampo. Muito em função da pressão que o Aldão recebia da parentada. Um baita marmanjo como eu, sem trabalhar, só estudando, era uma realidade que não combinava com os rigorosos estatutos das obreiras famílias Martino, Avezzani e congêneres.

V.

Particularmente, achei que o pai deu uma boa solução para o problema que se apresentava. Eu gostava de música, vivia arranhando o violão, sonhando em ter uma guitarra – era, enfim, um jovem que amava os Beatles, os Rolling Stones e o Benjor que, à época, ainda era apenas Jorge Ben.

Por outra, tinha também a história de que estava prestes a servir o Exército – e as empresas não contratavam os garotos nessa faixa etária.

VI.

A princípio, encarei a coisa como uma diversão.

Pegava o ônibus lotado pela manhã e vinha dependurado na porta do coletivo na hora de voltar.

Fora esse perrengue, o que mais me incomodava era obedecer ao gerente da loja, um certo sr. Walter, que nos fazia – a mim e ao Diogo que trabalhava comigo – rodar a mesma música, o sucesso da época, o dia todo.

A música se chamava “A ÚLTIMA CANÇÃO” e o intérprete era um clone do Roberto Carlos, chamado Paulo Sérgio.

Manda quem pode e obedece quem tem juízo.

VII.

Tocávamos o compacto à exaustão. Quando o Waltão dava uma folga, eu tascava na vitrola os elepês dos tropicalistas Gil e Caetano, também o dos Beatles que eu gostava muitão.

Nessas horas, a loja não vendia disco algum, mas ficava lotada de garotas que estudavam no Colégio da Fundação Álvares Penteado, próximo dali.

Talvez por essa falta de tino comercial, a loja teve vida curta.

Fechamos as portas antes de junho acabar.

VIII.

– E a revolução? Cadê a revolução? – pergunta o amigo a exibir certa impaciência com o meu embromation.

Na verdade, amigo, dia sim e outro também, o Centro de Sampa era cenário de embates entre estudantes e cavalarianos militares que tentavam dissipar as manifestações. Ora começavam com a turma de Direito no largo São Francisco, ora com o pessoal da USP na rua Maria Antônio, ora o coletivo se reunia na Praça Patriarca e imediações.

Era um tumulto só.

Correria para todos os lados.

Os cassetetes cantavam.

IX.

Não era raro ficarmos em meio aos confrontos.

Zarpávamos assustados no meio da confusão a procura de abrigo dentro das lojas da região que logo cerravam suas portas. Para evitar maiores transtornos.

Waltão, o gerente, não gostava, mas quase sempre acolhíamos grupos de manifestantes à espera de que passasse a tormenta.

Aquela moçada me parecia tão culta, tão corajosa.

Talvez um dia eu fosse como eles.

Talvez…

X.

Não fui, ô covardia!

Mas ainda hoje sorrio quando rememoro o barulho das pencas e pencas de bolinhas de gude que os estudantes arremessavam contra os cavalarianos para travar a perseguição e comprometer o galope dos animais.

Meninos espertos, corajosos. Que sabiam lutar pelos sonhos e utopias de toda gente.

Isto, eu desconfio, aprendi um pouquinho…

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