Eu e minhas caminhadas.
Recomendação médica.
Preciso fazê-las diariamente.
Reluto.
Mas, se não fazê-las, como entendê-las.
E, por que não, saboreá-las?
…
Divagações à parte, fui me exercitar no fim da tarde de ontem na pista de Cooper que existe, aqui, perto do apartamento onde moro.
Querem saber?
Até que me diverti com o trecho da conversa que ouvi entre o filho e sua exasperada mãe.
Aconteceu por acaso, juro!
…
Eu seguia lá com meus passinhos miúdos – entre o segundo e o terceiro quilômetro de um trajeto que invariavelmente termina assim que bato no marco 4 -, quando ouço vozes alteradas à minha retaguarda.
Uma mulher se mostra indignada:
— Como assim? – pergunta.
Sem tempo até de respirar, ela própria emenda:
— O que estão lhe ensinando? Onde estamos? O que é isso?
O interlocutor tenta esclarecer. É um jovem. Pelo tom da resposta, não acredita no absurdo do que está escutando:
— Mãe, pensamento abstrato é uma corrente da Filosofia que nos faz entender o fato e o contexto do fato. A classe vai aplicar o conceito nas aulas de História. O que há de errado nisso?
…
A conversa começa a me interessar.
Imagino que acabo de descobrir os personagens da próxima crônica.
Cadencio os passos e deixo que me ultrapassem. Guardo uma certa distância, suficiente para que possa vê-los e, principalmente, ouvi-los.
A mamãe deve ter pouco mais de 40, se me permitem a indiscrição.
Está exaltada:
— Estão manipulando os alunos. Isso é que é. Bem que ele vem alertando…
Quem será este “ele”? – pergunto a mim mesmo.
Desconfio quem seja, mas prefiro ouvir o que o garotão tem a dizer:
— Não é nada disso, mãe. Se a gente não conhece a amplitude do fato, antecedentes e consequências, quais os interesses que estão em jogo, quem ganha, quem perde e outros valores e informações, como poderemos ter um pensamento crítico, equilibrado, sobre a realidade?
…
Deu vontade aplaudir o garoto (16/17 anos, se tanto).
Me contive.
A senhorinha espumava contrariada. Acabara de descobrir que talvez tivesse um ‘esquerdinha’, um ‘comunistinha’, dos mais articulados, dentro da própria casa. Que horror!
— O quê? Pensamento abstrato? Isso não existe. O fato é o fato – e pronto. Isso tem nome: é manipulação da juventude. Ma_ni_pu_la_ção! Vou falar com o diretor, com o supervisor… Isso não vai ficar assim. Quem é o professor? Quero saber, fala, fala… Estão manipulando, ma_ni_pu_lan_do.
Não houve a delação premiada. O bom rapaz apelou para o bom senso:
— Não faz isso, mãe. Vamos passar vergonha, eu e a senhora.
— O quê? Agora está com vergonha da própria mãe? Quanta ingratidão! Vou falar com o seu pai.
…
Vi que o garotão só balançou a cabeça e nada respondeu.
Pensei em achar um jeito de intervir a favor dele. Cabeça boa, ajuizado e, me pareceu, estudioso.
Mas, ponderei comigo mesmo, não se deve dar pitaco em assunto de família.
Além do que, ele sabe se posicionar e se mostrou bastante sensato nas respostas.
Me dei por satisfeito. Diminui ainda mais os passos para que a dupla se distanciasse.
De longe, ainda observei que a mulher continuava a gesticular.
Também já estava no fim da caminhada.
Mas, lhes confesso, amigos leitores, saí da pista bem melhor do que entrei.
Senti um renovar de esperanças.
E fui pra casa assoviando uma velha e enigmática canção do Caetano…
O que você acha?