UMA NOVELA BLOGUEIRA – (Foto: Leila Cunha)
A DEUSA HINDU que o Ator conhece quando vai a uma Pinacoteca e os dilemas da profissão que tem lá seus altos e baixos. Mas, é imprescindível…
– Estão dizendo que o doutor vai morar lá na Pousada do Morro Torto?
– Por enquanto, sim.
Respondo no automático, sem querer prolongar o assunto.
Estou tão absorto nas minhas lembranças. Não me dei conta de que o motorista cessou com o suposto talento musical há algum tempo. Perguntou por um tal de Sr. Camargo que trabalhou na TV como alguém “que tira e põe as coisas no estúdio”. Contra-regra, talvez.
Mudo a conversa. Vou lhe contar sobre a Deusa Hindu que conheci na Pinacoteca quando fui a uma vernissage de um amigo. Acho que Felisberto gostaria de ouvir.
Ela trabalhava ali e, naquele início de tarde de sábado, estava com um rapaz ao lado. Devia ser o namorado.
Bastou um olhar para que nós nos pertencêssemos.
Fulminante.
Veio em minha direção e se apresentou. Disse que me levaria ao Quiroga, o artista plástico expositor.
A propósito, onde anda o Quiroga?
…
Enfim…
Voltei no outro dia, depois no outro e no outro.
Mas, ficávamos apenas conversando e nos esbarrando.
Era uma situação lúdica. Sabíamos o que queríamos, mas havia um cuidado em dar o primeiro passo. Ou o primeiro amasso. Ou o primeiro tudo.
Não era indiana nada, devaneio meu. Mas, parecer parecia, e era toda envolta em mistério e zen-budismo.
…
A vida desandou profissionalmente.
Precisei me ausentar da cidade.
Fiquei um tempo sem aparecer.
Assim que pude voltei à Pinacoteca com um pretexto qualquer.
Queria pesquisar algum tema.
Ela se disse feliz por me rever.
Sorriu. Entendeu que estava ali por ela.
No caminho para a biblioteca, aconteceu o beijo. Impulsivo, com gosto de ‘pra sempre’.
E assim tudo começou.
…
Foi mesmo um tempo louco.
Juramos nos casar no templo budista, numa cerimônia despojada, descalços e em segredo.
Nunca aconteceu.
Estranho. Não deixamos de nos amar.
Apenas tomamos caminhos outros.
Vai ver porque sou péssimo em guardar segredos.
…
– Olha que tive meus motivos para voltar pra cá.
Felisberto continua falando, melhor lhe dar atenção:
– Mas, não entendo: um ator famoso como o doutor querer se isolar do mundo? O lugar é bonito, tá certo. Para descansar, ótimo. Conjuminar as ideias, também. Mas, olhe que ficar lá por mais de três dias, nem o Talarico aguenta. Sempre que pode, inventa que precisa repor a despensa e desce pra São José do Barreiro.
Talarico? Ah, sim, o dono da Pousada do Morro Torto. Foi com ele que tratei a estadia, sem data certa para a saída. Também ele ficou surpreso. Disse que o hotel-pousada não era exatamente um flat. Mas, claro, sentiria-se honrado com a minha presença e veria como fazer na questão do preço.
Tenho algum guardado. Nunca fui de muitos luxos.
…
Alguns coleguinhas viraram fazendeiros, outros compraram apartamentos de cobertura, iates, essas coisas de celebridades endinheiras.
Não os invejo.
Nunca me fiei na profissão. Tem altos e baixos. Não que tenha sido morrinha. Apostei em algumas montagens que foram assim-assim. Fiz alguns investimentos conservadores que me permitem, nessa fase da vida, tirar um tempo sem trabalhar e sem passar fome.
– Preciso desse ócio, digamos, criativo. Quero reavaliar algumas coisas, racionalizar, simplificar. Vou tirar um sabático. Pensar e repensar. Não tenho mais idade para me enganar, para ilusões. Não há como derrapar justamente agora. Também não tenho mais tempo para lamentar o que se perdeu. Dá para entender?
…
Respondi a ele ou a mim mesmo?
Não sei.
O que sei é que estou só.
Que perdi a motivação de estar num palco.
Detesto tudo o que me chega às mãos.
Acho pobre, sem inspiração, repetitivo.
Um ator precisa de desafios. Renovar-se a cada empreitada.
Qual a função da arte hoje?
Ganhar dinheiro, reafirmar o status social, entreter, alienar?
Melhor criar galinhas, como diziam os antigos.
…
O que você acha?