Fotos: Arquivo Pessoal
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8 – Um otimista histórico…
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Quando chegamos ao centro antigo de ORVIETO, ficamos felizes. Não só pelas características etruscas de mais esta bela comuna italiana, a uns 200 quilômetros ao norte de Roma. Era dezembro e fazia frio (3 graus), mas as ruas estreitas estavam iluminadas e repletas de gente, com um astral lá em cima. A embalar essa sensação gostosa de conviver com pessoas felizes, uma música sacudida, dessas que se acompanha com o estalar de dedos, saía das caixas de som espalhadas por todos os cantos da aldeia.
Não precisamos de muito tempo para nos dar conta do que acontecia. Um festival de música maneiro. O Free Jazz de Orvieto, com a participação de artistas de renome internacional, deu um toque alegre e descontraído em meio aquelas construções antigas e históricas – acho que já lhes falei que na Itália tudo é “histórico”, não?
É legal observar como os italianos enchem a boca e estufam o peito ao dizer que o Duomo gótico de Orvieto é HISTÓRICO, aquele afresco de Luca Signorelli é HISTÓRICO, a conquista do scudetto pela Internacionale é HISTÓRICO, o Coliseu…
Bem, o Coliseu, então nem se diga…
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Mas, voltemos a Orvieto.
Encantados pelo som e de fora das apresentações daquela noite (os ingressos estavam esgotados e -pasmem! – não havia cambistas por perto), voltamos às alamedas assim que desabamos nossas bagagens no pequeno hotel.
Seguimos meio que a esmo em busca de um bom lugar para comer.
Não caminhamos muito, não.
Até porque o frio e a sorte conspiraram ao nosso favor. Um restaurante belíssimo, o San Giovanni, apareceu estrategicamente iluminado por grandes holofotes, no fim de uma viela, ao lado da bela igreja em louvor ao santo homônimo.
Eram pouco mais de oito da noite. Foram frugais as escolhas do almoço em Roma. Depois fomos buscar o carro – uma perua Astra, que não tem similar no Brasil – na locadora e daí rodamos três horas e meia, com uma breve parada para o café. Mais o tempo de achar um hotel básico e nos conforme do orçamento. Agora, nossos estômagos também faziam lá seus improvisos sonoros.
O San Giovanni, diga-se, foi uma ótima pedida. Não tanto pela pizza ou pelo vinho, corretos. Mas, nada além disso. O preço também, diria, revelou-se um tantinho salgado aos nossos bolsos de tímido paladar.
Mas, o ambiente compensava.
Óbvio, era uma construção antiga. Que preservou traços e imponência dos tempos medievais. Porém, com bom gosto e engenho, o antigo foi arejado com sutis pinceladas de modernidade nos móveis, nos adereços e, sobretudo, nos diversos níveis dos quatro andares justapostos e sem paredes centrais que pareciam flutuar no ar, como plataformas. De tal modo que a casa toda se apresentava como ambiente único, e acolhedor.
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Subimos para o terceiro andar. De lá víamos o térreo, o primeiro e o segundo andares. Era cedo para os padrões brasileiros – e, provavelmente, italianos também – porque não havia lá grande movimentação.
Mesmo assim, numa mesa próxima à nossa, uma grande família comemorava ruidosamente o grande feito de um circunspecto senhor, de nome Silvano.
Como sei disso?
Simples. Mal acabávamos de acertar nossa conta, quando fomos abduzidos para a festança. Descobriram que éramos brasileiros e desandaram a dar vivas a Kaká, Ronaldo, Adriano, Ronaldinho e até ao Rodrigo Tadei que, à época, jogava no Roma.
Juro, não houve como escapar.
Viramos tutti gli amici. Sem perceber e aos trancos e barrancos num idioma que improvisamos ali, na hora. Ao som de cançonetas, regada a copos de vinho.
O motivo de tamanha festa?
O Sr. Silvano estava sendo saudado como vencedor em um concurso regional de contos. O prêmio, além da láurea e do reconhecimento público, seria uma bem-vinda quantia de 15 mil euros.
Dava para o gasto – e também para pagar aquela boca-livre com familiares, velhos e novos amigos, que éramos nós.
O dono da festa era contido no vinho, mas não nas palavras. A todo instante, fazia o relato de sua vida – em essência, o que entendi ser o estofo da narrativa premiada.
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Basicamente, era o seguinte.
Na mocidade, o jovem Silvano era um portentoso atleta. Nadava, corria, praticava o cálcio (como eles chamam o nosso futebol), competia de bicicleta (que é um esporte top lá para eles), mas se vangloriava mesmo de ser, ao que pude captar, “campeão de cuspe à distância”, lá na sua terra natal, a “HISTÓRICA” Sardenha.
Posso ter entendido algo errado.
Mas, creio que não. Porque o senhor ria de dar gosto quando contava essa façanha e ameaçava dar mostra de como fazia na tal competição mandando um brevíssimo torpedo três andares abaixo. Os filhos, netos e parentes uivavam e aplaudiam. Mas, não deixavam que ele concluísse o intento. Para alívio de todos no restaurante, especialmente os inocentes que estavam no térreo.
Mas, não foi essa sua única proeza.
Já adulto e em andanças pela Bota, acabou presidente de um sindicato de alguma cidadezinha na Toscana, sem nunca trabalhar pra valer na tal função. Casou, deu jeito na vida e, agora, ao cabo de tantos anos se dizia escritor. Para comprovar, mostrou um brasão que atestava algo que não captei e citou uma série de títulos de livros que escreveu – todos sobre a luta operária.
Herói ou farsante, o certo é que fez o conto a pedido da comissão organizadora – o que, de resto, já lhe dava uma certa importância, até mesmo um discreto favoritismo. Por isso, agora todos comemoravam e como comemoravam. Inclusive o nosso grupo de brasileiros.
Só no fim da noite, fiquei sabendo que era uma comemoração prévia.
O resultado do concurso à vera só seria divulgado no dia seguinte.
— Se o pai foi convidado, é porque o prêmio é dele – dizia o filho, justificando a gastança e a farra antecipada.
Fomos embora com essa certeza, aliás.
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No dia seguinte, todos na praça central da cidade com as melhores roupas e olheiras. O resultado seria divulgado – e foi. Não deu outra. O conto do Sr. Silvano ficou em penúltimo lugar.
Uma colocação “HISTÓRICA”, se me permitem.
Ficou à frente apenas de outro competidor que esqueceu de anexar a última página aos originais entregue à comissão organizadora.
Acontece, imaginei.
Familiares e amigos, porém, não pensavam assim. Estavam furiosos.
— Aôôô, Silvano, mas nem pra isso você serve. E ainda diz se orgulhar de ter cursado Literatura na Universidade de Urbino, onde Dante estudou! Ma che!!!
Achei uma tristeza.
O Sr. Silvano, não.
Dizia compreender o inexplicável da derrota:
– Mas, o que fazer? Pelo menos, ontem nos divertimos a valer.
E ria de um jeito muito engraçado, como a debochar de todos, inclusive dele mesmo.
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Um detalhe: ele não tem um dente na frente.
E explicou o porquê aos ‘brasilianos’ na noite anterior.
O dentista lhe garantiu que, com o passar dos anos, os dentes andam. Então, o Sr. Silvano está esperando que os de trás venham para frente.
Trata-se, pois, de um inveterado otimista HISTÓRICO.
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* Publicado originalmente em 18/05/2007
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