Fotos: Arquivo Pessoal
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9 – O jantar das duas senhoras
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Quando chegamos, elas já estavam ali. Em silêncio a remoer o antipasto e a memória. Não nos chamaram à atenção a princípio. Eram apenas duas senhoras, para lá dos setenta, a ocupar uma das mesas junto às grandes janelas do restaurante do Hotel Sangalo, em PERUGIA.
Estávamos com fome.
Viajamos o dia todo, sob uma chuva fina e intermitente. Depois, não satisfeitos, nos perdemos pela cidade em busca de hospedagem.
Rodamos pelos arredores da capital da Umbria várias vezes, sem rumo e sem prumo.
Quando pensamos em desistir – e seguir para Assis que é pertinho -, eis que surge o imponente hotel e nos abriga,
com alguma generosidade a 100 euros por apartamento triplo. Nada mal.
Topamos – e não nos arrependemos.
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Agora, quase nove da noite, queríamos apenas jantar. Mas, chama a minha atenção a cena com as senhoras ali em frente. Quietas. Impassíveis. A cumprir o solene ritual das refeições italianas – antipasto, primeiro prato, segundo prato, sobremesa e a inevitável garrafa de vinho sobre a mesa
— Olha, como elas se parecem.
Não sou o único do grupo a reparar nas mulheres. Provavelmente são irmãs. A roupa, o silêncio, o penteado, o silêncio, os gestos, o silêncio, o olhar no nada, o silêncio – em tudo, se parecem.
Não que fossem exatamente iguais. Mas havia semelhança até nos óculos que usavam. Definitivamente, para nós, eram irmãs – e ponto.
Fizemos nossos pedidos, bem mais modestos que os das senhoras, e tentamos entabular uma conversa sobre o roteiro que faríamos nos dias seguintes. Mas, outra vez, elas voltaram a ser o assunto.
— Ué, elas não se falam, não?
— Será que brigaram?
— Vai ver são mudas?
Havia elegância nos gestos contidos das irmãs, certamente italianas que, juntas, curtem o fim-de-semana na cidade dos arcos etruscos. Naquele momento, porém, desconfio, percorriam, por conta e risco, os arcos e os grotões das lembranças. Dos sonhos que ficaram pelo caminho. Dos tempos idos – e de efêmera felicidade.
Um mundo que ninguém, nem o tempo, poderia lhes roubar. Um universo rigorosamente pessoal e intransferível.
Tudo em forma de silêncio e de um olhar mais alongado para o nada, o vazio, o intangível.
Sou capaz de jurar, nem perceberam que eram o assunto da ruidosa mesa de brasileiros. Brasileiros,curiosos e bisbilhoteiros, diga-se.
Chamei a atenção do pessoal para os nossos pratos que chegavam, saltitantes nas bandejas.
Era bom controlar os gastos. Por isso simplificamos o pedido a um tipo de massa para cada viajante.
— É as velhinhas estão ‘de boa’ – invejou o mais jovem da tropa.
Rimos todos a concordar com a pertinência da observação. E, louvado seja, foi a nossa vez de fazer silêncio e enfrentar a lasanha, o nhoque e o ravióli que coube a cada um de nós.
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Confesso que me intrigou o silêncio das duas senhoras.
Estavam juntas, e estavam sós.
Quantos de nós não passam a vida assim mesmo em meio às galeras e aos modismos?
Eu mesmo, não raras vezes, me vejo distante e desinteressado, como se fosse um estrangeiro dentro de mim.
De outro modo, noto que, cada vez mais, as pessoas têm dificuldade de conversar um assunto comum a quem fala e a quem ouve.
(Normalmente, quem está com a palavra discorre sobre ele mesmo. E, quem escuta, faz que está aí, mas na verdade nada ouve.)
Me parece que, mesmo em bandos e tribos, andamos cada vez mais individualistas, com planos e querências que não ousamos contar nem a nós mesmos.
Andamos distantes de pessoas queridas. E fazemos de conta que podemos viver muito bem sem elas. E aí, gradativamente, nos habituamos a uma solidão que pode não ser física, mas existe – é real e perigosa.
Estamos presentes e ausentes, em tantos lugares e em lugar nenhum.
Exatamente como as duas senhoras.
Em meio à bagagem, não esqueceram de trazer também lembranças, o silêncio, uma certa melancolia, o silêncio e a própria mania – irreversível e silenciosa – de ser só.
Até quando saíram do restaurante, mostraram como se auto-isolaram uma da outra – e do mundo.
A primeira pegou uma única maçã na fruteira. A outra retornou minutos depois.
Apanhou a garrafa de vinho e apenas um cálice – e os levou para o quarto.
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Nem sei porque lembrei-me dessa história.
É verdade que ouvi, dia desses, raro desabafo de um amigo – quase desistindo de tudo e de todos.
— As pessoas hoje vivem mais de sensações e menos, bem menos, de sentimentos.
Pode até parecer a mesma coisa, mas há uma enorme diferença entre uma coisa e outra.
Viver é uma coisa, estar vivo é outra…
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* Publicado originalmente em 27/02/2007
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