Fotos: Arquivo Pessoal
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27 – Número Um
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Nevou.
PARIS se fez mais romântica ao enfeitar-se de branco, telhados e ruas, logo na primeira manhã daquele ano.
Estávamos a escolher os próximos roteiros de viagem na Gare de Saint Lazare – queríamos conhecer Versailles, cidade nos arredores parisienses onde existe o tal Palácio que, dizem, inspirou o arquiteto italiano Tommaso Gaudenzio Bezzi na construção do nosso Museu do Ipiranga.
Erramos de Gare. Levou um tempo para descobrirmos que deveríamos nos dirigir para a Gare do Nord, de onde parte o trem em horários precisos.
Adiamos o passeio – e ficamos por ali pensando no que fazer e olhando o movimento.
Chamou nossa atenção um senhor que chegou a cantar, como se nada mais houvesse no mundo. Ele, a canção e as lembranças.
Deu um não-sei-o-quê de saudade ali na hora que, mesmo agora, estou a me perguntar se era coisa minha, do cantante ou da dolência natural à música romântica francesa?
Estou sem resposta ainda hoje.
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Ao lado do cantante, seguia um guri que, indiferente a cantoria, não parava de falar.
Dezesseis ou dezessete anos, se tanto.
Devia estar a contar os feitos da noite de São Silvestre, como por lá é conhecido o 31 de dezembro. Mas, o dito-cujo cidadão não lhe ouvia.
Tinha um chapéu enterrado na cabeça e o sobretudo que, desconfio, atravessou gerações. Poderia ser pai, avô, tio ou parente do garoto, mas não lhe dava atenção. Apenas andava ao seu lado, a cantarolar versos inteligíveis.
O olhar vadio seguia os trilhos dos trens que interligam Paris a outros cantos da França e da Europa.
A um dado momento, o rapazola se tocou da indiferença.
Encheu-se de brios e pulou na frente do senhor.
Queria aprovação para essa ou aquela proeza.
Reforçava com gestos e sorrisos.
O expediente de pouco adiantou.
O figura parou de cantarolar. Mas, não do enredo.
– Proeza! Que proeza, menino? Proeza será o dia em que você aqui deixar uma mulher chorando de amor e partir em um desses trens, também com o coração apertado, para enfrentar novos desafios. Aí, sim, poderá dizer que a vida valeu para alguma coisa. Aí, sim, vai se sentir um homem de verdade.
Voltou a cantar e a olhar os trilhos.
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Gostei.
Falou pouco e disse tudo.
Cá pra nós, o homem poderia estar lembrando de algum filme como sugeria a tal cena.
O cenário era propício para encontros e despedidas, os dois lados da mesma viagem. Ambos inesquecíveis.
Também poderia falar por experiência própria.
Percebi uma certa perplexidade na expressão do garoto, tipo: não foi isso que eu perguntei.
Porém, no ato, concordei com o senhor. E, sei lá porque motivo, me vi na plateia do Olympia, antiga casa de espetáculos paulistana, em 1993.
Ali, o cantor Nélson Gonçalves fazia um show que reverenciava seus 50 anos de boemia.
O Olympia estava lotado.
Nélson a enfileirar um sucesso atrás do outro – A Minha Renúncia, Nem as Paredes Confesso, Negue, Fica Comigo Esta Noite e a indefectível Boemia, entre outras.
Lá pelas tantas, os acordes introduziram um samba-canção de Benedito Lacerda e Mário Lago, chamado Número Um. Originalmente gravado por Orlando Silva, os versos contam a história de um homem que vê a mulher amada ir embora em busca de tantas e tamanhas “proezas”, se é que me entendem?
Termina assim:
Não guardo frios rancores
Porque entre os teus mil amores
Eu serei sempre o número um
Nélson não segurou as lágrimas.
A platéia percebeu e se emocionou. Aplaudiu com mais intensidade. Quando as palmas e assobios diminuíram, o cantor tentou agradecer. No entanto, lá do fundo do salão, veio a voz de um gaiato:
– Chorando, hein, Nélsão…
Mas o cantor não se perdeu.
Apesar da gagueira, habitual quando Nélson falava, deu uma lição de vida para todos nós.
– Se você ama-ma-sse como eu ama-mei, te-tenho certe-za que tam-bém cho-cho-choraria…
Mais e mais aplausos.
Não havia neve, óbvio. Mas transbordou romantismo.
Isso aconteceu no bairro paulistano da Lapa, mas bem poderia ser Paris.
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* Publicado originalmente em 19/06/2007
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(Nélson morreu cinco anos depois, em abril de 1998, aos 79 anos.)
O que você acha?