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Um (quase) conto de Natal

Foto: Arquivo Pessoal

Diz o provérbio:

Quem conta um conto aumenta um ponto…

Prometo, pois, tentar ser fiel à história que se passou num longínquo dia de Natal e que achei bonita quando a conheci nas palavras de um amigo de infância.

Amigo raro, e distante – o Nestor.

Ele mora na Bélgica desde garoto quando acompanhou o pai exilado nos primórdios da malfadada Redentora.

Só fui revê-lo uma vez, tempos depois, em Lisboa num aponto via redes sociais.

Bem malucos, aqueles dias antes da pandemia, quando até o impossível se fazia possível!

Naquela tarde, numa cafeteria à beira do Tejo, entre um café e outro, um pastel de Santa Clara e outro, uma lembrança e outras tantas, repassamos, eu e o Nestor, nossas trajetórias.

Tão distintas, e com improváveis semelhanças.

A bem da verdade, eu mais ouvi do que falei.

Nestor sabia mais de mim do que eu dele.

Por conta do Blog, creio – e também de uma imensa saudade das coisas do Brasil que, ele me afiançou, nunca lhe abandona.

Uma saudade que, na sua relutante solteirice, o faz passar horas e horas na frente do computador a prospectar as tais brasilidades nem sempre auspiciosas.

Enfim…

Não é esse o propósito dessas esparsas linhas que ora lhes escrevo no embalo do fim de ano.

Um (quase) conto que se passa num dia de Natal.

Não lembro a data certa dos fatos.

Sei que os dias foram se passando e a história – que me era tão próxima – hoje me parece distante, algo perdida como uma tênue e fugidia lembrança.

Sei também que sempre quis contá-la, aqui, no Blog.

Mas, temi pelo resultado final.

Não sei se conseguiria lhe dar a carga de emoção que veio junto com o depoimento do amigo.

Como poderia eu descrever aqui um brevíssimo e luminoso instante da existência de duas pessoas que mal conheço e, a bem da verdade, elas também nunca se conheceram.

Olhem o perrengue: o Nestor me garantiu que só viu a outra à distância e por breves minutos.

A outra que o amigo chama de: 

“A mulher da Ávila”.

Para efeito deste humilde alinhavo, vou chamá-la de a Moça de Ávila, assim mesmo em maiúsculas.

Começo pela descrição que o amigo me faz da musa:

Deveria ter, na ocasião, em torno de 35 anos, se tanto.

(Ele estava na casa dos 40 e poucos. Ou muitos?)

Jovem e bonita. Com gestos elegantes mesmo em uma lanchonete Made in USA que chega a destoar do padrão clássico de uma das praças daquela bela cidade medieval espanhola, recortada por imponente muralha.

– Você conhece Ávila?

O amigo perguntou, sem se interessar muito pela resposta.

Mal e mal, respondi.

“Passei um ou dois dias entre ruelas e praças. Pouco me lembro.”

Mas, tudo bem, sigamos em frente com o papo.

Essas historietas românticas aguçam minha curiosidade.

Penso logo: 

Que bela crônica daria!

Só que o Nestor encalacrou num silêncio a remoer a delicadeza das cenas.

Instantes depois se pôs a descrevê-las:

“Não conseguia tirar os olhos daquela mulher. Ela, nem aí. Acompanhava, atenta, o ir e vir do menino robusto, de cabelos encaracolados que devia ter uns 5 ou 6 anos e se esbaldava em subir e descer uma engenhoca de plástico colorido feita de cubos sobrepostos. A saída era um escorregador que desembocava, para alegria do meninão, numa dessas piscinas de bolas azuis, verdes e vermelhas. Engraçado, não lembro ter visto bolas amarelas ou brancas.”

O amigo me disse que o que lhe chamou a atenção foi o fato dela estar desacompanhada.

“Não entendi. Em pleno 25 de dezembro, dia de Natal, quando todas as famílias estão reunidas e coisa e tal.”

Acho que ele estava carente. Sozinho numa cidade desconhecida…. Tanto que ele reparou que a Moça de Ávila não trazia aliança em nenhuma das mãos – o que lhe passou a impressão de certa tristeza em seu semblante.

Mesmo quando chamava a atenção do menino, o tom era carinhoso – e triste.

— Pedro, Pedro, cuida-te, niño.

Ela calava-se a seguir.

Seus olhos viajavam pelas paredes iguais e sem vida da lanchonete, repleta de grupos de gente jovem e barulhenta.

Ela, no entanto, abstraía-se num silêncio pontuado pela fumaça do cigarro que tinha entre os dedos e, de quando em quando, levava à boca.

A sensação que o Nestor me passou é que a Moça de Ávila, nesses momentos, não estava ali. 

O pensamento perscrutava o passado. 

Ou o futuro?

Naquele entardecer quase noite de rigoroso inverno, 25 de dezembro, em que ou em quem ela pensava?

Em alguém distante, o marido?

(Pode ser. Porque hoje o uso ou o não uso de aliança nada provam. Talvez o felizardo estivesse trabalhando ou, como o próprio Nestor, viajado a serviço? Pode ser.)

Ou será que ela vivera uma paixão alucinante em dias outros e, por esses desencontros da vida, hoje se via só?

Só como o amigo Nestor.

Romântico, Nestor.

(Será que teremos final feliz?)

Enquanto isso, o garoto peralta subia e descia do escorrega e, segundos depois, desaparecia dentro do cubo gigante. Voltava com um largo e travesso sorriso a retribuir os cuidados carinhosos da mãe.

Era ele fruto de um grande amor, certamente.

— Pedro, Pedro, cuida-te.

Nestor não soube precisar quanto tempo ficou ali a observar. A fazer conjecturas sobre a própria solidão e o sobe-e-desce, nem sempre colorido, de nossas malambradas existências.

– Ah, os amores, suspirou em certo instante da narrativa.

Sim, porque um dia a Moça de Ávila viveu o encanto de um grande amor, foi muito feliz…

Ou não?

Não deu tempo, logo o amigo se pôs a filosofar:

“Por mais breve que tenha sido, essa felicidade, creio, valeu à pena. Sempre valerá. Bastava ver aquele menino a brincar.”

Aliás, segundo meu interlocutor apaixonado, foi do Pedrito a iniciativa de ir embora.

Correu para a mesa onde estava a mãe. Ajoelhou-se na cadeira, mordeu o último pedaço de hambúrguer, bebeu o que restava do refrigerante no copo de papelão e esfregou as mãos fechadas nos dois olhinhos. 

“Sinal de sono, em qualquer lugar do mundo.”

A Moça de Ávila levantou-se. Pegou os casacos no cabideiro. Agasalhou o garoto, sem esquecer de não deixar que o gorro lhe tapasse os olhos. Depois, fez o mesmo consigo. Jogou as duas pontas do cachecol para trás e veio em direção à porta de mãos dadas com Pedro.

Nestor estava numa das mesas próximas.

E diria que, escolheu bem as palavras, para me dizer sobre a magia do que viveu:

“Indescritível! À saída, por um instante, nossos olhares se cruzaram. Um brevíssimo e abençoado instante. Mas, amigo, vou lhe confessar : ainda hoje tenho a sincera impressão de que, naquele átomo de vida, nós nos pertencemos.”

* Fiquemos por aqui…

Nada mais adequada com o samba de Paulinho da Viola para embalar nossa história de hoje.

Com alguma criatividade, também poderemos transformá-lo em trilha sonora deste 2021 que ora se despede…

Que tenhamos um 2022 pontuado de momentos mágicos, luminosos, inesquecíveis.

Que deixemos o coração nos levar.

E, principalmente, o Menino Deus nos proteja e guie…

Feliz Natal, amigos!

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