Foto: Arquivo Pessoal
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Abdias, o Rabugento, anda ainda mais ranzinza e encafifado.
O homem deu para ter um sonho recorrente.
Enigmático.
No arrasto da madrugada, enquanto dorme, ele se vê como um jovem tuareg a cruzar dunas de areias de um deserto escaldante numa busca sem fim.
Busca esta que nunca lhe é revelada na trama do sonho.
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Abdias está cada vez mais curioso.
“O que este rapaz inconsequente procura?”
“Por que ele se parece tanto comigo quando eu era moço se nunca fui dado a riscos e aventuras?”
As perguntas ficam sem respostas.
E o deixam ainda mais ranzinza.
Pois, a cada sonho, sabe que é ele próprio o aventureiro que lhe chega noite adentro.
“Nunca fui assim” – confessa a si mesmo.
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Abdias, o Rabugento, não atina com o sentido da coisa toda.
Nunca se deu ao desfrute de quimeras e devaneios.
Levou a vida no passo lento do conformismo dos dias iguais.
Preza por uma rotina disciplinada, sem sustos ou surpresas.
No mais, não se permite reclamar dos conformes dos dias atuais.
“Tudo certo, nada resolvido” – diz ele em tom lacônico.
Assim é a existência humana, filosofa às paredes e a si mesmo.
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Vem daí o incomodo com o tal sonho.
Seria coisa de outra encarnação, outras vivências?
Não acredita.
Abdias, o Rabugento, a contragosto, foi ao dicionário ver se existe uma ciência que estuda o significado dos sonhos..
Encontrou.
Chama-se Onirologia.
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Hãhã.
Boa. Pensou em consultar um especialista.
Mas, quem disse que teve coragem.
“Vão me chamar de maluco”.
E ranzinzamente concluiu, com a razão dos precavidos.
“É caro pra dedéu!”
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Dia desses, buscou uma solução mais em conta.
Deixou a natural rabugice de lado – e ensaiou contar a um amigo a história das noites mal dormidas. Que se vê em meio a um imenso deserto. Que se vê jovem e audacioso. Se sente livre, leve, solto, sorridente (ah, como sorri aquele rapaz do sonho!), libertário e liberto.
E o mais grave:
Não reclama de nada. Sente-se feliz como Abdias nunca foi.
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Ficou só na ameaça a confissão.
No meio da descrição, disse apenas que se via perdido num imenso deserto.
O conselho do amigo foi o típico conselho de amigo na mesa de um botequim:
“Deserto? Perdido no deserto? Ok. Joga no camelo e, se ganhar, paga umas brejas para a turma toda”.
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Abdias, o Rabugento, nada disse.
Ficou em silêncio.
De repente, do nada, para espanto do amigo e de todos que ali o conheciam, soltou um riso frouxo, debochado, liberto como há tempos não fazia.
E, em meio a gargalhada, fez a pergunta que ninguém entendeu:
“Como vou jogar no camelo se o indivíduo só me aparece num alazão preto retinto?”
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O que você acha?