Foto: Divulgação/Puma
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Não sei explicar como aconteceu.
A bola sobrou para mim que jogava de lateral esquerdo.
Estava ali, um pouco além da linha que divide o meio campo. O valente ponta-direita, que me dera um trabalho danado durante o jogo inteiro, esquecera de me acompanhar. Imagino o cansaço dele pelo meu.
Só havia uma diferença. Eu era novo no clube e no time, a gloriosa Itália – que, àquela altura da partida, empatava em zero a zero com Portugal pela Copa das Nações. Um resultado que não nos interessava em nada.
Não nos levaria à outra fase da competição. A Espanha já estava classificada depois de derrotar a sofrível equipe dos árabes – na verdade, um catado de jogadores daquela região e outros que não se encaixaram em time algum.
II.
A bola sobrou para mim depois de uma grande confusão na área lusa. Um bate-rebate danado. Faltavam poucos minutos para o fim da partida e chovia. Uma chuva abençoada, eu diria. Sempre gostei de jogar na chuva. Nunca fui exatamente um estilista, mas um zagueiro seguro que sabia sair jogando de quando em vez.
Não vou usar esse espaço para ficar contando prosa e dizer que era isso e aquilo que nunca fui. Também não vou deixar barato para que vocês me tirem de perna dura. Não fiz feio nos times em que joguei – a começar pelo Santos do Cambuci, comandado pelo João Bicudo e passando por outros não menos renomados como o Estrela dos Boêmios, a seleção do Colégio Nossa Senhora da Glória, o Huracan do Glicério (uniforme mais lindo que já vi na vida – camisas grenás, calções pretos e meião cinza), o Brasília, o Independência até chegar onde estava naquela noite de chuva forte.
III.
E a bola sobrou para mim; eu o lateral esquerdo improvisado da Itália, terra dos meus avós para quem meu pai torcia em todos os mundiais. A camisa azul, o distintivo. Estava orgulhoso de mim mesmo por estar ali, naquele campo barrento, naquele preciso instante.
Preciso lhes dizer que já não era um garoto quando aconteceu.
E a bola sobrou para mim. Tão ou mais cansado que o ponta adversário. Não lhe dei trégua um segundo durante todo o jogo. Colei no cara que devia igualar-se comigo na idade. Talvez tenha exagerado em alguns carrinhos. Mas, compreendam, não podia dar vacilo, era novo no time e queria levar a Itália à final.
IV.
E a bola, como disse, sobrou para mim…
Não sei explicar como aconteceu…
Do jeito que veio, eu a escorei com a trava da chuteira Diadora, legítima italiana emprestada do meu amigo Rubão. O pontinha não fez fé, e não me acompanhou. Então, dei dois ou três passos à frente e enfiei o pé direito por baixo da ‘bichinha’.
Estava na lateral, como disse, entre a risca da grande área e o meio de campo. Bati forte na bola porque a lama a deixara pesada. Nem acreditei quando ela começou a subir na direção do canto esquerdo goleiro. Tinha muita gente na frente do homem de camisa colorida. Ainda por cima, sei lá o que imaginou, ele deu dois passos a frente.
V.
A bola subiu, subiu…
Eu a olhei esperançoso a girar em sua órbita imprevisível numa noite de chuva.
Eu a olhei a encantar-me como quem vê, pela primeira vez, a mulher dos sonhos e se revela ali o mistério de amar.
E, por segundos, se faz silêncio e expectativa.
VI.
Só me dei conta do que acontecera pela alegria dos meus, pelos abraços que recebi, pela festa sob chuva. E, principalmente, pelos gritos que vinham da pequena arquibancada.
Eram do amigo Rubão, mais feliz do que eu:
— É gooool, é gooool… O Rodolfão é o cara. Mas, a chuteira é minha…
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* Nota do autor:
Escrevi esse texto em junho de 2008. Das lembranças que tenho, é uma das vivências que mais se aproximam da felicidade plena. Esclareço que a Copa das Nações é (ou era) realizada todos os anos entre associados pseudos boleiros do Clube Atlético Ypiranga que se dividem (iam) em supostas ‘seleções’ dos países que têm ascendência. Era divertido...
* Em tempo:
Depois do jogo, o amigo Rubão me presenteou com a Diadora, ‘italiana legítima’. Disse que eu era merecedor, e a chuteira… bem, a chuteira não lhe servia nos pés, era um número menor do que ele calçava.
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O que você acha?