Foto: Leila Kiyomura
…
12 – A GARRA ATÕMICA
Adoro sorvete. Um, dois, três… Perco as contas de quantos consigo consumir na praia num dia de sol daqueles bem grandões.
Quando a vida era a vida e eu andava por toda a praia, a praia toda era minha.
Era assim que eu pensava.
O sol, o mar, as nuvens, a areia quente nos pés, os guarda-sóis coloridos, as pessoas sorrindo e felizes. Tudo, tudo, para mim, formava o belo cenário de um reino encantado.
Esclareço que o céu só me pertencia inteiro em dois momentos: ao raiar do dia ou ao entardecer quando tem uns tons avermelhados, bonitos de se ver.
Quem duvidar da minha soberania, bastaria perguntar por mim a qualquer vendedor de sorvete. Todos me conheciam.
Aliás, sempre quando me viam já ficavam por perto.
Puxavam uma conversinha e iam me tentando com aquele isopor repleto de preciosos picolés.
…
Minha mãe, esperta que só, falava:
– É a tática deles, Mingo.
Como eu só havia ouvido essa palavra em transmissões de futebol pela TV, sempre imaginei que “tática” fosse algo bom como me passar a bola para eu fazer um golaço.
– Não, não é isso, Mingo.
Então, poderiam querer me mandar jogar como goleiro. Aí, eu não gosto, não. Já não é tão bom. Gosto é de fazer gols. Ser artilheiro.
A mãe até que tentou explicar. Mas, deixa pra lá, nunca descobri a real.
Sei que, com ou sem táticas, teve um dia, aqui mesmo na praia onde termina a pousada, quando a vida ainda era a vida, que eu tomei cinco ou seis picolés numa só manhã.
Ai, eu nunca sei direito essas coisas de números.
Mas, vocês já sabem disso.
*
Pois então…
Era um depois do outro.
Tava que tava, viu!
Tanto que nem sequer me lembrei de comprar o sorvete especial que vem com a dedeira de plástico no lugar do palito. Com cinco desses dedos ameaçadores, a gente forma uma garra atômica. E aí a gente brinca de super-herói.
Vocês sabem que prefiro mesmo jogar futebol ou videogame. Mais ação. Mesmo no videogame, o joguinho que eu mais gosto é o do futebol.
Mas, não é por isso que eu não vou brincar de super-herói, é ou não é?
*
Quando eu estava terminando o picolé de chocolate, que é o meu sabor preferido, dois ou três garotos, ou quatro, não sei, foram lá, compraram o especial e formaram a garra atômica inteira. Saíram felizes, pulando e pulando, os danados.
Só aí que eu percebi.
Eu tinha quatro dedos da garra guardados na bolsa de pano, enorme e colorida que a mãe traz quando vem à praia, faltava unzinho para eu inteirar o quinto e, finalmente, completar a poderosa garra atômica.
Corri atrás do homem que vendia o picolé. Nem cheguei a falar e ele já se antecipou ao meu desejo:
– O sorvete especial acabou, Mingo. Só amanhã, agora.
Empaquei ali mesmo, e perguntei:
– Como assim? E agora?
E ele:
– Só amanhã.
*
Nossa! Não sei explicar o que aconteceu naquele brevíssimo instante.
Parece que fiquei sem chão. Os olhos ficaram embaçados e, quando percebi, explodi num berreiro só!
Chorei mesmo.
Chorei.
Como a vida pode aprontar uma decepção dessas para mim?
(Mal sabia eu da história de pandemia.)
Acredito que não chorava tanto, desse jeito escandaloso, desde quando tinha cinco, seis anos. Ou quatro. Ah, sei lá.
13 – OLHAR O NADA
Quanto mais eu chorava, mais as pessoas na praia olhavam para mim como a dizer:
“E lá vai o menino que não tem garra atômica.”
E eu chorava assim mesmo, sem levantar muito a cabeça. Sentia-me o último dos últimos.
“E lá vai o menino que não tem garra atômica.”
Todos correram em minha direção para saber: o que havia acontecido?
Quando souberam, viraram as costas e se puseram a falar mal de mim.
“Ah, que bobagem.”
“Pensei que fosse coisa séria.”
“Um menino grande como você, chorando por essa porcaria.”
“É falta de surra!”
Alguém falou isso, não sei quem. Minha mãe fez uma expressão de quem não gostou. Mas que alguém falou, falou. Porque ela logo engrossou a voz, e disse:
– Para com isso. Do_min_ gos !
*
Quando minha mãe fala meu nome inteiro e, com voz firme, vai separando as sílabas, é melhor parar mesmo.
Parei. Quer dizer, fiquei com o choro contido. Longe de todos.
Só o Enzo não disse nada. Saiu caminhando pela praia sozinho, como sempre fazia. Andava devagar. Ora de cabeça baixa, ora olhava para frente, ora se fixava na linha do horizonte. A impressão que dava é que estava olhando o nada, olhando para dentro dele mesmo. Um pouco como eu me senti naquela hora.
*
Uma vez, ele me disse assim.
O mistério está em aprender a ver a felicidade onde nossos olhos possam ver, e não só. Enxergar além, compreender que o invisível, o fortuito, o acaso, os mistérios também estão presentes em nosso dia a dia. A vida é um espantar-se, Mingo!
Naquele dia, não entendi. Mas acho que hoje eu entendo.
Nunca precisei daquela garra para ser feliz. Foi bobeira mesmo.
Hoje cedo, eu queria dizer isso para a minha mãe. Estava tão aflita, desarvorada mesmo.
Deveria ter dito.
– Vai passar, mãe!
Mas, não tive coragem – e jeito.
Não sou escritor. Por enquanto.
…
Continua amanhã…
…
…
O que você acha?